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Por — São Paulo

No início de abril de 2003, menos de um mês após o começo da Guerra do Iraque, o Hospital Psiquiátrico de Al-Rachad, em Badgá, foi invadido por uma tropa de saqueadores. Soldados americanos até tentaram intervir, mas, no meio da confusão (que se arrastou por dias), cerca de metade dos internos escapou. Em julho daquele ano, o escritor iraquiano Sinan Antoon, que desde 1991 vive nos Estados Unidos, voltou a Bagdá para filmar a vida sob a ocupação americana. Visitou o Al-Rachad e conversou com pacientes que estavam lá durante os saques.

Anos depois, escreveu um conto policial que se passa durante a invasão do hospital. Nele, Jassim, um dos pacientes, aproveita o pandemônio para fugir. Quando retorna à casa de sua família, agora habitada por um tio, descobrimos que seus pais haviam sido assassinados. Mas quem os matou? A resolução do crime, claro, só surge nas últimas linhas do conto. No entanto, à medida que a história avança, o mistério vai dividindo espaço com a política. Além de retratar as consequências da guerra com os EUA, o conto traz referências à rivalidade entre partidários de Saddam Hussein e milícias islâmicas aliadas do Irã.

“O prontuário de Jassim” foi incluído em “Badgá noir”, antologia de contos policiais ambientados na capital iraquiana organizada por Samuel Shimon e publicada no Brasil pela Tabla, editora especializada em literatura árabe. A combinação de investigações criminais e comentários da situação política do país, do regime de Saddam (1979-2003) à ocupação americana, dá o tom da coletânea, exemplo de obra sob medida para quem aprecia a chamada ficção noir e o Oriente Médio.

E há cada vez mais opções na literatura e no audiovisual nessa linha. Basta visitar uma livraria ou plataformas de streaming para topar com obras que não dispensam o suspense para entreter o público e ainda ajudam a entender as complexidades geopolíticas da região. Prova disso são as antologias policiais publicadas pela Tabla, séries como “Fantasmas de Beirute” (Paramount+) e as israelenses “Fauda” (Netflix) e “Tehran” (Apple TV, com Glenn Close) e filmes como “Mosul” (Netflix).

No mapa

Originalmente, “Badgá noir” integra uma coleção criada pela editora americana Akashic Books, composta por antologias policiais ambientas em cidades espalhadas pelo globo. No entanto, no Brasil só saíram quatro: a de São Paulo (organizada por Tony Bellotto e publicada pela Leya em 2016) e as de Badgá, Marrakech e Beirute (os contos desta última são assombrados pela guerra civil libanesa, que durou de 1975 a 1990). Sinan Antoon, o escritor iraquiano, afirma que o noir é um “gênero fértil” para explorar a realidade de seu país após a queda de Saddam, marcada pelo aumento da criminalidade e pela proliferação de gangues e milícias.

— Na verdade, podemos comentar a realidade social em qualquer gênero literário. Mas a literatura policial oferece mais ferramentas a autores interessados na violência extrema de convulsões sociais e na crescente brutalidade dos regimes — diz o autor de romances como “Morrer em Bagdá” (Globo Livros), que narra as memórias de um preso político, e “Ave Maria”, protagonizado por cristãos iraquianos (minoria no país) e que será lançado no ano que vem pela Tabla.

Se o conto de Antoon em “Bagdá noir” aborda, ainda que de passagem, tensões entre Irã e Iraque (os dois países guerrearam entre 1980 e 1988), a série “Fantasmas de Beirute” mostra como a tentativa dos aiatolás de exportar a revolução islâmica pela região resultou na criação de um novo tipo de terrorista: o homem-bomba. A série, assinada pelos israelenses Lior Raz e Avi Issacharoff (criadores de “Fauda”) e produzida pelo brasileiro Daniel Dreifuss (do oscarizado “Nada de novo no front”), acompanha a caçada da CIA a Imad Mughniyeh, líder do Hezbollah e fundador da Jihad Islâmica no Líbano. Mughniyeh esteve por trás das explosões das embaixadas dos EUA em Beirute, em 1983, e de Israel em Buenos Aires, em 1992. Ganhou o apelido de “Fantasma” porque a CIA só conhecia seu rosto por uma fotografia 3x4 tirada ainda na juventude. Só foi capturado em 2008.

“Fantasmas de Beirute” nasceu como uma série documental. Depois, transformou-se num “relato fictício de eventos profundamente pesquisados” (frase exibida no início do primeiro episódio). O projeto intercala trechos de telejornais da época e entrevistas com testemunhas oculares à narrativa ficcionalizada. Por tratar de tópicos políticos sensíveis, a série não pôde ser gravada no Líbano nem escalar atores que viviam no país. A Beirute que enche a tela é, na verdade, Casablanca, no Marrocos.

Sem didatismo

Ao GLOBO, Dreifuss afirma que topou produzir a série por apreciar projetos que sejam “políticos, mas não partidários” e capazes de mostrar como o passado moldou o presente (da expansão do terrorismo islâmico aos métodos cada vez mais agressivos da CIA), mas dispensando o tom professoral.

— A série evidencia as complexidades da região ao mesmo tempo em que apresenta personagens humanizados, que têm desejo, ambição, e são capazes de atos terríveis — diz ele, que também produziu outros filmes políticos, como o chileno “No”, sobre o plebiscito que derrotou a ditadura de Augusto Pinochet. — Nos preocupamos em mostrar, de cara, que países estavam envolvidos no conflito e o que estava em jogo. Depois disso é que introduzimos a ação. Espero que o público saia ainda mais interessado em se informar sobre a região.

Autor de romances policiais (inclusive uma série de cinco livros, um para cada século da história do Rio) e admirador da cultura árabe, Alberto Mussa lembra que se apropriar do gênero noir para retratar a realidade de uma região envolve riscos, como cair no “didatismo”.

— Não quero ler autores árabes para saber das desgraças da terra dos meus avós. Para isso, leio reportagens. Me incomoda a literatura que é muito realista, que está muito preocupada em representar o dia a dia ou em mostrar o país para um público leitor estrangeiro — diz o autor de “Compêndio mítico do Rio de Janeiro”, que descende de libaneses (mas só por parte de pai, ele faz questão de frisar). — A polícia é corrupta e os pobres são oprimidos no mundo todo. Um romance policial também pode escapar do documental.

Embora o gênero policial seja o centro de umas das histórias de “As mil e uma noites” (“As três maçãs”, em que há uma investigação de assassinato) e a própria Agatha Christie tenha vivido no Iraque, a literatura noir não fincou raízes profundas no mundo árabe. Na apresentação de “Marraquexe noir”, o escritor Yassin Adnan lembrou que a primeira narrativa policial marroquina só foi lançada em 2000: “Le poisson aveugle” (O peixe cego), de Miludi Hamdouchi. Até 2018, não havia mais de 30 romances noir no país.

— O gênero policial não é muito desenvolvido no mundo árabe, ainda que alguns jovens autores egípcios, como Ahmed Naji e Mohammad Rabie, utilizem elementos dessa estética, inspirados principalmente pelo cinema noir — diz o americano Elliott Colla, professor de literatura árabe e autor de “Baghdad Central”, romance de mistério que se passa na Guerra do Iraque (e que virou série já exibida no Globoplay).

Ocidente e Oriente

O escritor iraquiano Muhsin Al-Ramli, que também é autor de um conto incluído em “Badgá noir” (“A morte da lua egípcia na casa bagdali”), suspeita que razões culturais e políticas expliquem o pouco interesse pela literatura de mistério na região.

— A literatura policial floresceu em sociedades afluentes, em que o controle coletivo sobre as vidas alheias se afrouxara, o individualismo e a privacidade se consolidaram e foram desenvolvidas técnicas modernas de investigação policial — diz ele, que cresceu ouvindo história da visita de Agatha Christie a Sedira, a vila iraquiana onde ele nasceu. — No mundo árabe, faltam métodos de investigação criminal. A polícia prefere recorrer a surras para acelerar confissões. Além disso, nossa estrutura social não hesita em expor comportamentos e relações privadas. E, em geral, nossa violência também é exposta, não é nada escondida.

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