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Por — São Paulo

Bartleby, o esquisitão do conto “Bartleby, o escrivão”, publicado em 1853 pelo escritor americano Herman Melville, tinha sempre a mesma resposta para quando seu chefe lhe ordenava uma tarefa: “Acho melhor não”. O personagem é um arquétipo de todos os trabalhadores anônimos, contínuos, garçons, estivadores e pessoas comuns cujas histórias, se bem contadas, são tão fascinantes como as das celebridades.

O interesse pelas histórias de gente comum moldou a obra de Gay Talese, um dos principais nomes do Novo Jornalismo que, aos 91 anos, lançou nos EUA, mês passado, “Bartleby and me” (“Bartleby e eu”, que no Brasil será lançado em 2024, pela Companhia das Letras). No livro, o americano exercita sua verve inconfundível para reconstituir fatos e impressões de mais de 70 anos de carreira, além de revelar segredos do processo de apuração do célebre perfil “Frank Sinatra está resfriado”.

Revelar segredos, aliás, é um dos esportes preferidos de Talese. Seus livros e artigos se distinguem por investigar as vidas privadas e detalhes desconhecidos dos indivíduos sobre os quais escreve. Fez isso com gângsteres em “Honra teu pai” (1971), adúlteros em “A mulher do próximo” (1981), jornalistas em “O reino e o poder” (1969), trabalhadores em “A ponte” (1964), imigrantes italianos em “Unto the sons” (1992) e, bem, voyeurs em “O voyeur” (2016). Neste “Bartleby and me”, o autor revive tópicos presentes em obras anteriores.

O livro descreve o começo de sua carreira como repórter de cidades no New York Times. Em 1965, aos 33 anos, passa a escrever na revista Esquire, na qual publicou o perfil de Sinatra, seu trabalho mais lembrado até hoje. Somos informados de que Talese, bem ao estilo Bartleby, não queria fazer o perfil por considerar as celebridades entediantes: “Acho melhor não”.

Talese queria mesmo era perfilar o redator-chefe de obituários do New York Times, Alden Whitman, ex-comunista, de saúde precária, dotado de prodigiosa memória para fatos históricos e autor do texto de 16 páginas que o Times publicou por ocasião da morte de Winston Churchill, em 1965. Mas, primeiro, precisava convencer o editor da revista, Harold Hayes. Entraram num acordo: se Talese produzisse o perfil de Sinatra, Hayes permitiria que escrevesse sobre Whitman.

Na segunda parte do livro, Talese recria a história por trás da história e revive agruras do processo de apuração. Inúmeras tentativas e alguns breves encontros sem nunca conseguir uma entrevista com o personagem, blindado por assessores, bajuladores e amigos. Ele reproduz a amistosa carta que enviou a Sinatra pouco antes de publicar o artigo, jamais respondida.

Na mesma seção, relembra fracassos editoriais, além da polêmica de “O voyeur”, livro sobre um dono de motel que espionou seus hóspedes por décadas, que rendeu críticas negativas.

O jornalista Gay Talese — Foto: Divulgação
O jornalista Gay Talese — Foto: Divulgação

O veterano Talese se mostra em forma na reportagem que fecha o livro, a trágica história de Nicholas Bartha, um médico workaholic de origem romena cuja principal paixão não era a esposa Cordula, com quem viveu por anos, mas o apartamento em área nobre de Manhattan que comprou com o suor de décadas de trabalho. Em 2006, depois do processo de divórcio, o tribunal o condenou a pagar US$ 4 milhões à ex-esposa por violência psicológica, dinheiro que não seria capaz de levantar nem com a venda do imóvel. Diante da perspectiva de ficar pobre e sem-teto, aos 60 anos, o médico abriu o gás e explodiu o apartamento — com ele dentro.

Por e-mail, Talese falou ao GLOBO sobre influências, fracassos, coberturas históricas, legado jornalístico e, claro, Sinatra.

Pessoas comuns rendem boas histórias?

Fui influenciado por escritores de ficção que criaram personagens memoráveis a partir de indivíduos simples. Herman Melville faz isso no conto “Bartleby, o escrivão”. Na peça “A morte do caixeiro viajante” (1949), o dramaturgo Arthur Miller fez de um vendedor falido, Willy Loman, um personagem extraordinário. Para mim, há descoberta jornalística nas pessoas comuns. Não sei muito sobre elas no começo. Nem meus leitores. Mas, depois que as encontro e elas passam a confiar em mim, acabo descobrindo coisas notáveis — e publicáveis. Se tivesse escolhido escrever sobre celebridades, teria seguido a trilha de dezenas de outros entrevistadores que vieram antes. Além disso, celebridades estão muito acostumadas a dar entrevistas, entregam um script pronto quando você fala com elas.

Por que o perfil de Sinatra se tornou um de seus trabalhos mais comentados?

Suponho que tenha se tornado tão conhecido por mostrar que é possível construir uma história comendo pelas beiradas. Conversando com pessoas do círculo de relacionamento do cantor, pude acessar informações que ajudaram a entender em profundidade sua psique e personalidade.

Sinatra o influenciou de alguma forma?

Como um ítalo-americano que cresceu no sul de Nova Jersey ouvindo suas músicas no rádio e lendo sobre ele na imprensa, nos anos 1940, fui inspirado por sua vida e pela maneira como a viveu. Ele era admirado pela maioria das colegas na escola e pelas clientes da loja de roupas de minha mãe, madames da sociedade protestante branca de Ocean City, minha cidade natal. Era sucesso no cinema num tempo em que os nomes italianos eram associados à máfia; evitou papeis de gângsteres, se apresentava como um homem correto, repudiava o racismo e o antissemitismo, era um performer envolvente, generoso, patriota. Ao fim da Segunda Guerra, graças a seu talento e ao enorme alcance de sua figura pública, despontou como o primeiro cidadão americano de origem italiana totalmente assimilado, abrindo caminho para que pessoas como eu se sentissem em casa nos Estados Unidos.

Ficou magoado por ele não ter respondido sua carta?

Não me incomodou, nunca esperei muito respeito ou boas maneiras de pessoas ocupadas e autocentradas, como tendem a ser as celebridades.

Há algo de que se arrependa ou que gostaria de ter feito diferente?

Não. Como Sinatra diz na canção “My way”: “Eu fiz do meu jeito” (no original, “I did it my way”).

Qual foi a sua cobertura mais marcante?

Em 1965, cobri as marchas de Selma (movimento pelos direitos civis dos negros que conduziu à aprovação da lei dos direitos ao voto), no estado do Alabama, e naquele momento parecia que os Estados Unidos iriam se tornar um país menos racista, acreditávamos na superação, como diz a letra do hino de protesto “We shall overcome”. Nos aniversários de 25 e 50 anos da marcha, retornei a Selma para escrever reportagens para o meu antigo jornal, New York Times. Mas os bons sentimentos inspirados por Martin Luther King e seus seguidores não cumpriram as expectativas. Os Estados Unidos ainda são uma nação racista. Muita coisa mudou, hoje pessoas negras trabalham ao lado de pessoas brancas em escritórios, artistas negros são celebrados nas colunas culturais dos jornais e estão por toda a parte em sitcoms e programas de televisão. Parece, às vezes, que os EUA são uma nação negra. Mas a verdade é que as raças ainda não se misturam: à noite, cada uma vai para seu próprio bairro, ainda temos um Harlem em Nova York. Nos restaurantes mais conhecidos da cidade, raramente se vê um casal negro jantando.

Pode comentar seu interesse por personagens com histórias de fracasso?

Sou atraído por eles. Todos falhamos, no final, pois todos morremos. Mas figuras sobre as quais escrevi como Floyd Patterson (pugilista campeão que perdeu o título para Sonny Liston) e Liu Ying (jogadora chinesa que perdeu pênalti na final da Copa do Mundo contra os EUA) têm algo a nos dizer quando compartilham a humilhação de perder uma disputa, a posição, o emprego. Os vestiários dos perdedores são muito mais interessantes do que os dos vencedores. Sempre achei que perder é muito mais significativo para uma pessoa do que vencer. E descobri que isso é verdade.

Bombeiros nos destroços da casa de Nicholas Bartha, em Nova York: suicídio com explosão em 2006 inspira texto com que Talese encerra novo livro — Foto: Reprodução
Bombeiros nos destroços da casa de Nicholas Bartha, em Nova York: suicídio com explosão em 2006 inspira texto com que Talese encerra novo livro — Foto: Reprodução

O que o levou a escrever a história do médico Nicholas Bartha?

Bartha foi uma figura trágica — meu tipo de história. Um sofredor, frustrado pela incapacidade de manter sua casa, um sobrado no estilo brownstone conquistado com muito esforço. Quando ele se deu conta de que ficaria sem nada, decidiu terminar tudo “do seu jeito”. Bartha está na categoria de Willy Loman e Bartleby.

Sobre seu legado no jornalismo, espera que alguma mensagem seja levada às futuras gerações?

Não sou missionário, apenas me sinto gratificado se estudantes apreciarem minha obra e meu jeito de trabalhar. É tão importante como um Prêmio Pulitzer.

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