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Por — São Paulo

Desde os tempos em que os espanhóis ainda mandavam por lá, as populações mestiças da região de Carchi, nos Andes equatorianos, dizem que a noite pode transformar qualquer mulher em voladora (voadora, em português). Quem repete essa lenda de origem indígena ao GLOBO é a escritora Mónica Ojeda, de 35 anos, equatoriana de Guayaquil que hoje vive em Madri, na Espanha.

— À noite, qualquer mulher pode entrar em uma espécie de transe, subir no telhado e sair voando. Pode ser a sua filha, a sua irmã, a sua amiga — conta Ojeda, por chamada de vídeo. — Acho fascinante que as voladoras habitem esse espaço do possível, em que toda mulher pode se transformar em um ser sobrenatural que apavora os homens, mas não faz mal nenhum se deixada em paz.

As voladoras descritas por Ojeda metem medo, mas também acendem o desejo masculino. Jorram mel pelas axilas. Perturbam a ordem natural e são a própria presença do divino. “Nunca havíamos sentido o delírio divino tão próximo nem seu desejo. Porque no fundo, acredite, estou falando desejo de Deus; o mistério mais absoluto da natureza”, diz a narradora de “Voladoras”, conto que abre o livro homônimo da equatoriana, recém-lançado pela Autêntica.

A tradutora Silvia Massimini Felix explica que o título foi mantido em espanhol porque “a voladora é uma criatura bastante específica do folclore andino, sem correspondência exata em lendas brasileiras”.

— Não faria sentido buscar algum ser mitológico brasileiro com características parecidas e tentar encaixá-lo na tradução, já que o livro é todo pontuado pela cultura andina, que é tão rica e peculiar — afirma a tradutora. — As voladoras têm algo de bruxas, mas não se encaixam propriamente nessa categoria. São representadas como mulheres belas, de longas cabeleiras, que levam notícias pelos ares e fazem esconjuros para ocultar amantes, entre outras feitiçarias.

Este mês, Mónica Ojeda desembarca pela primeira vez no Brasil para participar da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorre entre os dias 22 e 26 e homenageia a escritora Patrícia Galvão, a Pagu.

Além de “Voladoras”, a escritora tem outros dois títulos publicados por aqui: o romance “Mandíbula” (Autêntica), e o volume de poemas “História do leite” (Jabuticaba). Ela é autora de sete livros de poesia, contos e romances. Costuma publicar primeiro na Espanha e de lá seus livros seguem para a América Latina. Apenas seu romance de estreia, “La desfiguración Silva”, foi lançado por uma editora equatoriana, a Cadáver Exquisito.

Os oito contos de “Voladoras” são uma boa introdução à obra da autora, que cria histórias bizarras, nas quais medo e desejo são quase indissociáveis e seres sobrenaturais surgem sem maiores explicações, desconcertando o leitor. Ojeda integra uma geração de autoras latino-americanas (que inclui a argentina Mariana Enriquez e a equatoriana María Fernanda Ampuero, entre outras) que subverte os clichês da literatura fantástica para descrever as violências que marcam a história do continente. O conto “Sangue coagulado”, por exemplo, trata de abuso sexual e é narrado pela neta de uma velha senhora que preserva segredos ancestrais, sabe o que é remédio e o que é veneno e como interromper uma gravidez: “do outro lado do rio diziam que a vovó era uma bruxa”.

Cobras e vulcões

Ojeda, cuja literatura ganhou o rótulo de “gótico andino”, diz que sua ficção é inspirada pela geografia física e humana de seu país. Lá, “apocalipse parece sempre próximo”, diz ela. O Equador é um dos países mais violentos da América Latina e tem mais de 20 vulcões ativos.

— Cinzas dos vulcões andinos caíam o tempo todo na minha cidade. Quando acordava e via tudo coberto de cinzas, eu me lembrava de que o Equador está cheio dessas enormes montanhas ardentes. Quando ia à serra, chorava ao ver os vulcões. Mas não de medo. É que me emocionava que algo tão bonito pudesse me matar. Essa experiência educou minha sensibilidade literária — conta a escritora. — Na minha cidade, há rios, estuários e manguezais. Cresci vendo inundações e crocodilos e serpentes no asfalto. O mundo selvagem invadia tudo o que tentava ser limpo e civilizado.

Essa irrupção do selvagem aparece em contos como “Caninos”, no qual a narradora tenta reprimir memórias da “sexualidade vermelha” de seus pais alcoólatras: “O pai com focinheira, de quatro. A mãe com esporas”. Às vezes, sobrava mordida até para as filhas.

— O desejo desperta o animal em nós, desorganiza-nos de uma forma criativa e estimulante, mas também nos faz mergulhar nas zonas mais escuras de nossa humanidade. O desejo sempre tem algo de monstruoso — diz a autora, que se interessa pelo “vínculo entre medo e desejo”. — O medo gera desejo e o desejo provoca medo. O desejo é sempre inquietude, nos coloca em um lugar de fragilidade e, às vezes, nos dá uma força que pode ser muito violenta. Aí entra o medo.

A escritora equatoriana Mónica Ojeda, autora do romance "Mandídula" e do livro de contos "Voladoras" — Foto: Gianella Silva
A escritora equatoriana Mónica Ojeda, autora do romance "Mandídula" e do livro de contos "Voladoras" — Foto: Gianella Silva

Embora investigue o medo em sua ficção, Ojeda não costuma ler histórias de terror. Prefere a poesia. Também não bota muita fé no sobrenatural. Crê nos fantasmas apenas como metáforas.

— Fantasmas, bruxas e zumbis são metáforas daquilo que nos perturba, que escapa da nossa compreensão racionalista. É assim que o sobrenatural surge nas narrativas orais, como uma tentativa mágica de dar ordem ao caos da vida. A literatura também é isso — defende Ojeda. — Escrever é buscar uma linguagem mágica, uma gramática e uma sensualidade que não reduzam as palavras a suas funções. Gosto de pensar que as palavras também são fantasmas.

“Meu psicanalista diz que a escrita é um lugar de revelações”, diz Fernanda, personagem de “Mandíbula”, o romance de Ojeda. Traumatizada pela morte do irmão caçula, Fernanda é aluna de um colégio da elite católica equatoriana. Apaixonada por literatura e filmes de terror, ela frequenta um prédio abandonado com suas amigas depois da aula. Um dia, sequestra sua professora de literatura, Miss Clara, uma mulher obcecada pela mãe morta, com quem ela mantinha uma sinistra relação de imitação. Clara acredita que a escrita de uma pessoa revela seu verdadeiro caráter: “o de sua mãe, por exemplo, era rítmico, definitivo, sibilino; o dela, desordenado, digressivo, cheio de orações subordinadas e enumerações”.

O estilo de Ojeda é uma mistura dos dois: rítmico, definitivo e transparente, mas também digressivo, cheio de frases intermináveis quebradas por travessões e expressões hifenizadas (como “cabelo-Mia-Farrow-em-O-bebê-de-Rosemary”) que lembram a linguagem da internet e, junto com referências a Taylor Swift e a séries de TV como “Diários de um vampiro”, conferem uma qualidade pop a sua escrita reveladora.

— Vejo a escrita como um deus, pois ela também nos cria como humanidade, revela o que inconscientemente somos. Como dizia Vicente Huidobro (poeta chileno, 1893-1948): embaixo de uma palavra, há outra palavra se debatendo — afirma. — Não temos qualquer controle sobre as palavras. São elas que nos controlam, dizem o que não gostaríamos de dizer, nos golpeiam como se tivessem corpo. Por isso, sou obcecada pela escrita e pelos efeitos que ela produz, como nos ensinar mais sobre nós mesmos.

Ojeda também aprendeu muito sobre si com as palavras dos outros, em especial dos “ativistes antirracistes” (assim mesmo, em linguagem neutra) a quem ela agradece ao final de “Voladoras”.

Na Espanha, para onde se mudou há cinco anos, descobriu o preconceito contra os latino-americanos e uma legislação imigratória draconiana, que, diz ela, tem o objetivo de convencer as pessoas a ir embora. Em 2021, os equatorianos eram a terceira maior comunidade imigrante na Espanha: 416 mil pessoas.

— Passei por todos os sofrimentos enfrentados pelos imigrantes latino-americanos. É muito difícil conseguir os documentos. A burocracia tortura tanto que muitos desistem antes de chegar ao fim do processo. Muitos coletivos denunciam o racismo da “Ley de Extranjería” e pedem que ela seja revogada — conta Ojeda. — Escrevi “Voladoras” sem documentos. Vivia sem papéis, com tudo o que isso implica: não conseguia ser paga por não emitir nota fiscal, não tinha acesso à saúde pública, não podia sair do país porque seria impedida de voltar. Quando terminei o livro, senti que precisava agradecer aos ativistas e às redes de apoio aos imigrantes. Sem eles, eu não sei se teria aguentado.

Serviço:

'Voladoras'

Autora: Mónica Ojenda.Tradução: Silvia Massimini Felix. Editora: Autêntica. Páginas: 136. Preço: R$ 54,90.

'Mandíbula'

Autora: Mónica Ojenda.Tradução: Silvia Massimini Felix. Editora: Autêntica. Páginas: 304. Preço: R$ 69,80

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