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Em seus livros tardios, Hilda Hilst definia o Brasil como “o país das bandalheiras”. No sentido mais corrente, como se sabe, o termo quer dizer libertinagem, devassidão, transgressão das práticas sexuais geralmente aceitas, mas também pode significar uma vocação nacional mais profunda na qual a seriedade e o riso — ou o alto e o baixo — não se distinguem mais com clareza.

Daí que a história da literatura brasileira, de Machado de Assis a Glauco Mattoso, passando por Roberto Piva, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e pela própria Hilda Hilst, tenha sido tão profícua na publicação de “livros bandalheiros”, não apenas porque tais autores passam a situar a sexualidade no centro de uma “cena” ficcional — deixando de ser “obscena”, a rigor —, mas também ao dizer o que não devia ser dito, tocando em assuntos limites (malditos) da experiência humana.

Esta história da literatura bandalheira, a seu modo, vem sendo feita nos últimos anos pelas publicações da crítica literária e professora da Universidade de São Paulo Eliane Robert de Moraes, que passou a reunir antologias fundamentais de literatura erótica no Brasil — como o recém-lançado “A parte maldita brasileira”, com quase 20 ensaios sobre escritores da nossa literatura.

Trata-se do resultado de décadas empenhadas ao tema do erotismo — há textos publicados originalmente em 2003, a exemplo da resenha que fez dos “Contos d’escárnio” de Hilda Hilst à época, “A prosa degenerada”. Mas a maioria dos ensaios é recente, concebidos por uma pesquisadora que maneja seus objetos com firmeza e inteligência, o que faz do volume uma leitura incontornável tanto para pesquisadores quanto para curiosos.

Interesse público

Eliane oferece uma leitura acessível mesmo aos leitores não acadêmicos. É um livro de amplo interesse público, como a escritora Amara Moira destaca na orelha do volume: além do mais, vem à cena em uma época na qual o sexo é tratado como ameaça, carregado pelo imaginário da opressão, e a literatura erótica passa a ser vista como temerária (ao não seguir à risca os jargões do presente).

E mesmo assim, ou mesmo por isso, o livro não simplifica tema tão complexo. Pelo contrário, a autora não só desfaz clichês moralistas sobre o assunto, como a separação que se costuma fazer entre erotismo e pornografia, como também enfrenta, com análises lúcidas, textos literários altamente controversos, a exemplo dos “Cantares de Sulamita”, de Dalton Trevisan, assim como os trechos proibidões de “Macunaíma”, que foram eliminados da versão definitiva pelo próprio Mário de Andrade.

Da “putaria das grossas” à “notável produtividade da discrição”, como diz a ensaísta sobre outro conto de Machado, “Singular ocorrência”, o erotismo é captado nas suas mais diversas modalidades. Com o ouvido atento aos materiais linguísticos mais desprezíveis ou “malditos”, a autora também se presta, na esteira de Freud, a uma análise minuciosa e criativa das palavras. Daí que haja algo de excessivamente erótico no significante “lotação” (conforme análise de “A dama do lotação”, de Nelson Rodrigues) ou de sujo (“pútrido”) na origem da palavra puta, segundo testemunha o ensaio de abertura do livro, que consiste em “devaneios etimológicos em torno da prostituta”.

O livro não conta apenas com ensaios sobre o erotismo. Uma reflexão sobre “A causa secreta”, de Machado de Assis, por exemplo, trata de um tipo de prazer, “quieto e profundo”, que nada tem a ver com erotismo, ao menos em sentido estrito.

Outro ensaio que foge do tema erótico é “Mãe, medusa”, reflexão sobre os desenhos que o artista Flávio de Carvalho fez de sua mãe no leito de morte, em seus momentos de agonia. A explicação de Moraes ao motivo pelo qual essa obra causou tanto escândalo nos “espíritos mais puritanos da provinciana capital” é convincente e iluminadora. Afinal, a representação da agonia não era exatamente uma novidade aos fieis católicos paulistanos nos anos 1940, acostumados às imagens do calvário de Cristo. Para a autora, a experiência do artista causou escândalo devido à sua extrema frieza diante do coma maternal, ao transformar a câmara mortuária em ateliê de pintura.

Reflexões como esta dão uma ideia também do material vasto do livro, que conta ainda com ensaios a respeito dos escritores Valêncio Xavier, Nelson Rodrigues e Reinaldo Moraes, autor de “Pornopopéia”, uma das obras mais engraçadas e pornográficas da ficção contemporânea. Como dizia Mário, “se três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria”, o leitor pode imaginar o que não sairia da reunião, no país das bandalheiras, que este livro promove.

Victor da Rosa é crítico literário e professor de literatura brasileira na UFOP

‘A parte maldita brasileira’.
Autora:
Eliane Robert Moraes. Editora: Tinta da China. Páginas: 424. Preço: R$ 120. Cotação: ótimo.

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