Quando desembarcou em Paraty, no mês passado, a atriz Andrea Beltrão chamou sua filha Rosa e disse:
— Foi o Artur que nos trouxe aqui.
Mãe e filha lançaram seus livros de estreia na programação paralela da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Andrea publicou “Antígona” (Paz e Terra), monólogo em que faz uma releitura da tragédia de Sófocles e que vem encenando desde 2016. E Rosa apresentou a plaquete “Em algum lugar, em algum ano”, que integra a coleção “Aqui + agora”, do selo literário Janela + Mapa Lab, e narra a história de Artur de seu nascimento, em 1974, até sua morte repentina, vítima de um aneurisma.
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Artur é o irmão caçula de Andrea, o tio que Rosa (nascida em 1997) nunca conheceu. Ele morreu em 1994, aos 19 anos. Andrea dedica seu “Antígona” a ele. Na tragédia grega, a personagem-título é condenada por insistir em sepultar seu irmão, Polinice. Filhos de Édipo com sua mãe, Jocasta, Etéocles e Polinice guerreiam pelo trono de Tebas e morrem em duelo. Creonte, tio deles, assume o trono e concede honras de herói a Etéocles, mas determina que o cadáver do “traidor” Policine apodreça à vista de todos. Antígona, porém, desobedece as ordens do tirano.
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Andrea conheceu a peça antes da morte do irmão. No início dos anos 1990, cogitou montá-la, mas desistiu porque só tinha uma vaga ideia na cabeça, enquanto a amiga Marieta Severo já estava com tudo pronto para estrear um espetáculo baseado no mesmo texto. Depois que Artur se foi, a tragédia grega ganhou novo significado para ela. Um dia, durante as gravações da série “Tapas e beijos” (Globo), ouviu Fernanda Torres falar animada sobre seu monólogo “A casa dos budas ditosos”, inspirado na obra de João Ubaldo Ribeiro.
— Fernanda faz essa peça só com uma peruca, uma mesa e uma cadeira. Achei um barato fazer uma peça que cabe dentro de uma mala. Ela me provocou: “Você também pode ter isso. Não tem um texto que você ame?” Eu respondi: “Antígona.” “Então, faça”, ela me disse. E eu levo tudo o que a Fernanda me diz muito a sério — diz Andrea, em entrevista por vídeo do Teatro Poeira, em Botafogo (de sua casa, na Gávea, Rosa também participa da conversa).
Andrea convidou Amir Haddad (que ela chama de “Zeus”) para dirigi-la. “Por que você quer montar esse texto?”, questionou o diretor. “A pergunta do Amir ficou na minha cabeça”, escreve a atriz no livro. “Demorei muito para admitir que a morte de meu irmão Artur, aos 19 anos de idade, tão jovem como Polinice, era o que me empurrava para falar dessa peça. Antígona, no seu grande ataque contra Creonte, não cita o nome de Polinice, isso me dava a chance de falar de amor com meu irmão.”
— Dizem que Antígona pratica desobediência civil, que ela foi a primeira feminista, mas o gesto dela é motivado por amor pelo irmão. O “meu irmão” que ela repete são pessoas diferentes para cada um de nós. Pode ser o meu irmão, o meu pai, a minha mãe, aquela pessoa que cuidou de mim. É bonito demais — diz Andrea, que no dia 4 de janeiro estreia, no Poeira, a peça “Lady Tempestade”, dirigida por Yara de Novaes e baseada nos diários escritos, entre 1973 e 1974, pela advogada pernambucana Mércia Albuquerque, que defendia presos políticos na ditadura.
Textos iniciais com Tuco
“Antígona” estreou em 2016, circulou pelo país e rendeu a Andrea o prêmio de melhor atriz da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Também virou o filme “Antígona 442 a.C.”, que teve pré-estreia em 2021 na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “Antígona”, o livro, inclui um relato da atriz sobre a criação do espetáculo (no qual ela se revela uma escritora cheia de ritmo), o texto da peça e a tradução de Millôr Fernandes da tragédia de Sófocles. Ela, porém, não se considera escritora, mas uma “aventureira”. Rosa é a verdadeira escritora da família, diz.
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Ainda criança, Rosa já escrevia roteiros para “A grande família”. De brincadeira, é claro. Em seus episódios, o romance entre a cabeleireira Marilda, interpretada por sua mãe, e Tuco (Lúcio Mauro Filho), filho de Nenê (Marieta Severo) e Lineu (Marco Nanini), sempre tinha final feliz. Mais velha, Rosa deixou a escrita de lado, fez faculdade de gastronomia e arrumou emprego num restaurante. Até que o “tesão” da escrita voltou.
— Me sentia uma impostora na cozinha. Parecia que eu só estava lá para ter sobre o que escrever depois. No meu caderno de receitas, comecei a anotar tudo o que me espantava, o que eu achava interessante, para transformar em ficção depois. No meu intervalo, ia para a praça, fumava um cigarro e escrevia observando as pessoas — diz ela, que hoje estuda Letras na PUC-Rio.
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Em 2020, Rosa publicou, na Amazon, o conto “Namoro de infância”, narrado por uma adolescente que se dirige a seu ex, que se assumiu gay. Os dois se conheceram na escola e o menino era violento. “Você bateu a minha cabeça contra a carteira uma vez, duas, três, seis no total”, recorda a narradora, que relevava tudo. “Eu via na trajetória romântica do mocinho e da mocinha a nossa história.”
Algumas das características de “Namoro de infância” se repetem em “Em algum lugar, em algum ano”, a história sobre o tio Artur, como concisão e linguagem direta (influência dos ídolos da autora: Bukowski, J.D. Salinger, Rubem Fonseca). O conto é uma sucessão de episódios que descrevem o nascimento de Artur, sua infância (quando ele adquire o gosto pela pintura), sua amizade com a irmã atriz, até sua morte: “Antes de o semáforo mudar de cor, Artur tem um aneurisma. Os bombeiros impedem qualquer um de tocar no corpo em convulsão. Assim ele morre. No meio da rua”.
Um dia, a sobrinha Talita começa a perguntar quem era o Artur de quem a mãe e a avó tanto falavam. Ela passa a coletar informações sobre o tio: “Artur é o nome do irmão da minha mãe que não existe mais. Não dá pra telefonar. Ele é capricorniano. Nasceu em dezembro. Cabelo castanho. Tímido. Eu também sou tímida, e capricorniana”. Com Rosa também foi assim.
— Ouvindo um pouco daqui, um pouco dali, fui juntando os pontos. Gosto de conversar com a minha avó sobre o Artur. Um dia, ela me mostrou uma caixa com fotos dele. Foi então que eu tive a ideia de dar voz a ele na literatura, inventando um pouco a partir do que me contaram. A primeira versão tinha os nossos nomes, mas depois eu mudei para assumir o lugar da ficção — explica. — Nunca vi o Artur, mas me afeiçoei a ele, sinto que o conheço bem. É como se ele fosse um amigo meu.
Rosa só mostrou a história para a família depois de pronta. A mãe aprovou.
— É como se o Artur tivesse ganhado vida outra vez e a qualquer momento fosse aparecer — emociona-se Andrea.
Rosa assumiu de vez a carreira literária. Concluiu seu primeiro romance, que se chama “Dois embaixo, dois em cima” e está sendo avaliado por editoras. É a história de um relacionamento abusivo, como o conto “Namoro de infância”, mas agora narrado pelo ex-namorado. Ela já engatou um segundo romance, intitulado “Nepobaby” (neologismo popularizado na imprensa americana para se referir a filhos de celebridades que usufruem de privilégios graças à fama dos pais).
— É sobre a filha de uma atriz famosa...
— Essa atriz sou eu? Espero que não. Você pare de me usar, hein (risos) — diz Andrea. — Brincadeira, pode me usar à vontade, eu também imito um monte de gente no palco. É ótimo!
Rosa adianta que “Nepobaby” vai abordar a pressão que artistas sofrem para criar uma persona digital.
— Mas é tudo ficção — insiste, enquanto sua mãe volta a rir. — Não tem como fugir da nossa realidade, né? Tem que aproveitar.
Serviço:
‘Antígona’
Autora: Andrea Beltrão. Editora: Paz e Terra. Páginas: 152. Preço: R$ 54,90.
‘Em algum ano, em algum lugar’
Autora: Rosa Beltrão. Editora: Janela + Mapa Lab. Páginas: 12. Preço: R$ 20.