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O edifício João Ramalho, no centro de São Paulo, é uma espelunca gerenciada pela milícia. Sem fiscalização, o condômino que ali decide morar não precisa de contrato, só o dinheiro em dia, ao contrário, leva uma surra de Adriano, o troglodita que administra o lugar. Em um dos apartamentos, quitinetes apertadas e lúgubres, vive Solano, o protagonista desiludido, cético, cujo passado atormentado e o caminho de altos e baixos o levou ao prédio.

Distopia com altas doses de sarcasmo e ironia, “Quando os prédios começam a cair” é uma espécie de labirinto que leva o leitor a um passeio pelas principais vias de São Paulo, como a Praça da República, a Estação da Luz e os edifícios Copan, Itália e Martinelli. Cartões-postais da cidade que vão ao chão sem explicações científicas — o que leva a especulações de cunhos religiosos, políticos e oportunistas.

A trama labiríntica se adensa em dois caminhos. Pela vida do protagonista contada em reminiscências, em subcapítulos, à medida que o cotidiano puxa causos do passado — sem ordem cronológica —; e o enredo em si, que mistura elementos da distopia, do heroísmo falido, para fazer uma crítica mordaz ao sistema.

Solano, que trabalhou em uma corretora da Avenida Brigadeiro Faria Lima, onde circulam os endinheirados do mercado financeiro, em dado momento faz suas malas, deixa família, emprego, o apartamento confortável em Perdizes, bairro nobre de São Paulo, e decide por uma vida errante. A distopia, antes mesmo das catástrofes naturais, começa neste ponto. Em sua nova vida, ele conhece Geórgia, uma bailarina misteriosa com quem desenvolve um vínculo amoroso bizarro. A relação vai bem, na medida do possível, sem muitas ambições além da vida frugal do novo homem, até que o primeiro prédio cai e a moça desaparece.

“O que parecia um problema dos prédios do centro de São Paulo, em três dias ganhou escala global. Nova York. Pequim. Roma. Madri. Buenos Aires. Todas essas cidades registravam desabamentos. Vinte e cinco prédios ao todo. No Brasil, Porto Alegre, Fortaleza e Rio registraram os primeiros casos, enquanto o Centro de São Paulo somava mais três quedas. O ponto comum dos desabamentos é que as edificações tinham mais de cinco andares”, narra Paz, que transforma a região central por onde anda o protagonista em um campo minado.

Contrastes da Vida real

Solano é um arquétipo do típico brasileiro da classe média baixa historicamente ignorado pelos pais, pelo governo e pela literatura. E precisa se reinventar para superar uma vida de expectativas medíocres. Com uma família disfuncional, o garoto parte de Alfenas para São Paulo até chegar ao curso de economia na USP.

Ali conhece figurões, como JP, típico burguês desconstruído que anda de carro importado, trabalha com o pai milionário e arrota seus monólogos incongruentes sobre desigualdade social, longe de ter consciência de classe. Um antagonista não propriamente malvado, mas que desperta em Solano uma série de gatilhos de culpa, prepotência e raiva. Em paralelo, o mineiro constitui uma família com Andressa, numa relação em que o trabalho é protagonista.

No romance, a vida deste homem comum desponta a distopia. A figura de um protagonista da classe média baixa, ainda que fortalecida nos últimos anos por romancistas como Luiz Ruffato e Paulo Scott, é novidade na literatura brasileira, que historicamente retratou com ênfase a vida da classe média alta de apartamento, bossa nova, linguagem rebuscada e temporadas em Paris ou, do outro extremo, a provação dos miseráveis condenados por suas naturezas.

A ruína cotidiana tem gosto de café requentado. Na trama, personagens secundários aparecem para fortalecer essa relação entre vida real e distopia, como Iara, uma professora de matemática aposentada que dirige Uber para se sustentar, e o índio Rudá, que em dado momento divide uma barraca com o protagonista. A busca por Geórgia, no entanto, torna-se um vício incessante, um caminho difícil para a personagem e previsível para o leitor.

Em uma queda de braço com a realidade, Mauro Paz constrói vias tomadas por barracas, facções, usuários de drogas e famílias desesperadas. Nesta São Paulo de ruínas, a política local evacua edifícios em vão, ao passo que o presidente negacionista do Brasil, no romance, minimiza os impactos da epidemia. Escrito em um mundo pós-Covid 19, “Quando os prédios começam a cair” satiriza as atitudes dos poderosos e vai ao encontro do descalabro social do noticiário. Os ricos, como sempre, salvam-se, construindo condomínios de mansões no interior, ignorando um cenário que ecoa as chagas de guerras, doenças e aquecimento global. A cidade é pedra sobre pedra, basta correr para não ser engolido por ela.

‘Quando os prédios começaram a cair’

"Quando os prédios começaram a cair", livro de Mauro Paz — Foto: Divulgação
"Quando os prédios começaram a cair", livro de Mauro Paz — Foto: Divulgação

  • Autor: Mauro Paz.
  • Editora: Todavia.
  • Páginas: 192.
  • Preço: R$ 69,90.

Matheus Lopes Quirino é jornalista

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