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Por — São Paulo

“Era uma noite escura e tempestuosa”, escreve Enrique Villa-Matas em um e-mail ao GLOBO. Não é o início de um romance noir, mas uma entrevista sobre seu último livro “Montevidéu”. Na manhã seguinte a essa noite macabra, recorda o escritor barcelonês, ele recebeu um rim doado por sua esposa, Paula. Enquanto se recuperava da cirurgia, Villa-Matas, revisou os originais de “Montevidéu” e conseguiu, enfim, identificar “o exato lugar onde realidade e ficção coincidem” (tema recorrente em seus livros): o quarto 205 do Hotel Cervantes, na capital uruguaia, onde o escritor argentino Julio Cortázar escreveu o conto “A porta condenada”. Montevidéu (como o finado Hotel Cervantes) é um dos cenários por onde passeia o narrador do romance, um escritor que traficou drogas na Paris nos anos 1970 e também vadiou por Caiscais, Reykjavik, Bogotá e St. Gallen.

Foi em Paris que o personagem descobriu que existem cinco tipos de narradores: os que não tem nada para contar; os que deliberadamente não narram nada; os que não contam tudo; os que esperam que um dia Deus conte tudo; e os que se renderam ao poder da tecnologia, “tornando prescindível, portanto, o ofício de escritor”. Ao GLOBO, Vila-Matas revelou a origem dessas cinco tendências, reclamou das séries de TV e dos franceses (mas disse que os ingleses são piores) e explicou por que ele (que com frequência vira personagem de outros autores) não tem discípulas.

Como você descobriu as cinco tendências narrativas apresentadas no romance?

O ponto de partida foi o contraste entre Voltaire, que dizia que o segredo para entediar era contar tudo, e o jovem Kafka, que, em “Descrição de uma luta” exigiu que tudo, absolutamente tudo, lhe fosse contado (“É o conjunto que me fascina”). Vi que entre Voltaire e Kafka encaixavam-se perfeitamente as “cinco tendências essenciais da narrativa do nosso tempo”, tendências respeitáveis, mas não me identifico totalmente com nenhuma delas.

O narrador de “Montevidéu” confessa sua “anacrônica intenção” de se transformar “em um escritor dos anos 20, estilo ‘geração perdida’”, como Ernest Hemingway, por exemplo. Você gostaria de ser um escritor de que época?

Gostaria de ser Cervantes (autor de “Dom Quixote), mas não sei se daria certo, porque ele, embora fosse um gênio, teve a má sorte de nascer nos arredores de Madri, onde foi muito maltratado. Verto lágrimas quando caminho pelas ruas de pedra daquela cidade (que me lembram Paraty). Uma alma livre, uma grande inteligência no meio de imbecis, uma personalidade de projeção universal, a quem obrigaram a ajoelhar-se, cobrar impostos, matar turcos, pedir favores, povoar prisões.

O narrador inventa a categoria “escritores franceses” e inclui nela Clarice Lispector. Por quê?

Essa classificação tem a ver com o humor do narrador, que chama de franceses muitos escritores que não o são. Talvez ele queira rir daquele desejo francês, tão louvável, mas que já virou um clichê e é bastante discutível, de acolher os maiores talentos literários do mundo e fazê-los seus. Mas os ingleses conseguem ser piores. São uma nação de piradas que depois de terem roubado todo mundo começam a ficar entediados.

Vou repetir uma pergunta que um jornalista faz à certa altura do livro a um dos personagens: o que mais um escritor de hoje pode tentar na hora de escrever?

Tratar de manter vigente a tradição da verdadeira literatura, entendida como uma arte livre, que se mantém contra todas as imposições.

E os escritores têm conseguido fazer isso?

Não vem ao caso dar nomes aos escritores que leio com maior entusiasmo e atenção, mas que devo dizer que, da literatura contemporânea, a corrente que mais me interessa é a que não está muito segura de si mesma e que, ao mesmo tempo, maneja uma prosa audaciosa, capaz de pensar sem a menor repressão. Uma escrita de crítica cultural livre, que é intempestiva e dissidente de seu tempo, que foge da falação geral. É certo que uma maior atenção às práticas literárias está em falta em nossos dias, mas, ainda assim, quero crer que ainda dá tempo de evitar que sigam prejudicando, de modo tão alarmante, a criação literária do futuro.

Seus livros são recheados de citações de outros autores. A maioria deles são homens brancos (assim como os autores que gostam de citar Vila-Matas). Como é a sua relação com autoras e leitoras mulheres?

O escritor (espanhol) Manuel Vicent diz que se nossa escrita for clara, teremos leitores; se for obscura, teremos discípulos. Ele também diz que eu sou bem-sucedido porque obrigo os críticos a acreditarem que são inteligentes e os leitores a serem tão analistas quanto o próprio escritor. Das palavras dele, eu deduzo que tenho leitores, críticos, comentaristas e discípulos. Tenho tudo! Menos discípulas. As mulheres me leem com muito mais entusiasmo que os homens, mas nenhuma quer ser minha discípula. Sabe por quê? As mulheres costumam ser mais inteligentes que os homens.

Em um texto famoso, você diz que “Mad Men” te reconciliou com as formas breves. Alguma outra série te inspirou?

Não. A qualidade das séries caiu muito. Aplicam a mesma fórmula a todos os episódios, mas só funciona no primeiro. Não me agrada, porque não vejo filmes e séries só pela trama, pela história, mas para ver como foram construídos os roteiros. E hoje em dia 90% deles são desconjuntados, se apoiam em uma só ideia.

Vira e mexe, você aparece obra de outros escritores, como a dos brasileiros Kelvin Falcão Klein e Paulo Roberto Pires. Como se sente ao virar personagem na ficção alheia?

Também fui protagonista de dois romances recentes: “Voyage avec Vila-Matas”, da francesa Anne Serre e “Nocturno de Gibraltar”, do napolitano Gennaro Serio, no qual apareço como o assassino de um jornalista que está me entrevistando em um hotel de Barcelona. Quebro-lhe o crânio quando ele põe em dúvida que um dia serei Nobel de Literatura. É uma grande paródia dos romances noir. Sou perseguido por um investigador psicopata que me tortura e me mata em um cemitério de Aix-en-Provence. Ele me enterra junto ao túmulo de Cézanne. É um romance brilhante. Convidamos Gennaro, meu assassino a apresentá-lo em Barcelona, mas ele teve medo de vir. Outro dia, visitei meu túmulo em Aix-en-Provence. Ri a noite toda.

Serviço:

'Montevidéu'.

Autor: Enrique Vila-Matas. Tradução: Júlio Pimentel Pinto. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 240. Preço: R$ 99,90.

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