Livros
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Por — São Paulo

O ano de 2023 pôs em xeque ao menos um clichê literário: o de que a autoficção é um gênero praticado por homens brancos de classe média alta interessados tão somente na investigação das próprias neuroses. Na esteira do Nobel de Literatura para Annie Ernaux, em 2022, multiplicaram-se nas livrarias obras que partem de um drama pessoal para jogar luz sobre a história coletiva, como “O que é meu”, de José Henrique Bortoluci (título já vendido para dez países), “Saia da frente do meu sol”, de Felipe Charbel, “Exploração”, da peruana Gabriela Wiener, e “Quem matou meu pai”, do francês Édouard Louis. Equilibrando-se entre memória e ensaio, estes autores se destacaram por construir pontes sólidas entre o particular e o político.

Para o crítico literário e professor da Unirio Kelvin Falcão Klein, a nova autoficção se beneficia de um certo “rigor acadêmico”: na tentativa de reconstituir o passado, os autores muitas vezes reviram arquivos como se fossem (e alguns de fato são) pesquisadores profissionais.

— Também chama a atenção como esses livros dialogam com outros livros, como se fossem relatórios das leituras dos autores, e criando redes “para fora” e não “para dentro”, como fazia a autoficção mais autocentrada — diz Falcão Klein.

A poesia também ganhou novo fôlego em 2023. “Engenheiro fantasma”, de Fabrício Corsaletti, foi eleito o Livro do Ano no 65º Prêmio Jabuti. O Prêmio Oceanos, dedicado às literaturas lusófonas, também sinalizou o bom momento da lírica nacional: quatro dos cinco finalistas da categoria Poesia eram brasileiros (o país não foi representado na categoria Prosa). O troféu ficou com Prisca Agustoni, autora de “O gosto amargo dos metais”, livro escrito sob o impacto das tragédias ambientais em Mariana e Brumadinho.

— Talvez a poesia seja o meio adequado para falar de um tempo como o nosso — disse a poeta Marília Garcia ao GLOBO, em novembro, às vésperas da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que nunca havia abrigado tantos poetas na programação principal: 19 de 44 autores convidados.

A 21ª Bienal Internacional do Livro do Rio, em setembro, também entrou para a História. Editoras bateram recordes de vendas graças à literatura jovem (também chama de Young Adult ou YA). Entre os dias 1º e 10, a “Bienal das bienais” recebeu mais de 600 mil visitantes. Foram vendidos 5,5 milhões de livros (cerca de nove por pessoa). Passearam pelo Riocentro ídolos YA como Elayne Baeta, autora de ficção lésbica, e Cassandra Clare, da série “Instrumentos mortais”.

Momento de atenção

Ainda assim foi, sobretudo, um ano de readaptação. Se na pandemia as vendas explodiram, este ano o mercado de livros voltou a se retrair. As Lojas Americanas entraram em recuperação judicial e deixaram uma dívida de R$ 85 milhões com editoras. A falência da Livraria Cultura foi decretada e revertida duas vezes. E a Saraiva, outrora a maior rede de livrarias do país, fechou as portas.

Até 3 de dezembro, as vendas de livros haviam caído 6,44% segundo pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores de Livros e da Nielsen Bookscan. O faturamento do setor diminuiu apenas 0,6% porque o preço médio do livro subiu 6% no ano (consequência da alta do preço do papel).

Diretora executiva da Autêntica, Rejane Santos explica que o papel e a impressão já representam mais de 60% dos custos de produção de tiragens superiores a sete mil exemplares. Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, descarta encarecer ainda mais o livro em 2024.

— Aumentar o preço pode ter um efeito dramático: queda nas vendas — diz ele. — O livro é muito sensível ao preço, é um dos primeiros itens a serem cortados em caso de aperto econômico. Toda a cadeia do livro sofreu com a queda generalizada nas vendas no segundo semestre.

O aumento dos custos de produção tem transformado o catálogo das editoras, afirma Flávio Moura, diretor geral da Todavia.

— Com o dólar mais caro, fica mais difícil publicar livros estrangeiros. Por isso, as editoras estão cada vez mais voltadas para a ficção nacional — explica. — A longo prazo, isso não é bom, porque torna o ambiente editorial menos arejado.

Os lançamentos também vêm perdendo espaço. De acordo com um levantamento feito por Gerson Ramos, diretor comercial da Planeta, apenas 7% dos livros vendidos entre janeiro e setembro foram lançados este ano. Não há nenhum título lançado em 2023 na lista dos mais vendidos do ano do portal PublishNews.

— A migração para o e-commerce explica por que títulos publicados há mais de um ano tem se saído melhor que os lançamentos — diz Ramos. — Quem compra on-line busca um livro específico. Nas livrarias, as compras são mais espontâneas, e os novos títulos enchem as vitrines. Temo que o desempenho mais tímido dos lançamentos torne as editoras mais refratárias a novidades e pressionadas a investir sempre no mesmo tipo de livro.

Ao mesmo tempo, editores notam que se tornou comum livros começarem a vender mais de um ano depois de lançados. O maior exemplo é “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, que chegou às livrarias em 2019, mas só em 2021 se tornou um fenômeno de vendas (e surge até hoje entre os mais vendidos). Rejane Santos, da Autêntica, conta que “Nação dopamina”, de Anna Lembke, que estreou em abril de 2022, demorou um ano para deslanchar. Hoje, o livro vende cerca de 10 mil exemplares a cada 40 dias.

— Tradicionalmente, lançamentos são livros publicados nos últimos seis meses. Mas já estamos pensando em estender esse prazo para um ou dois anos — diz Rejane.

Portanto, se você lançou um livro em 2023 e ninguém reparou, não se preocupe: ainda dá tempo de virar best-seller.

Outros destaques

O ‘frankenstein’ da Inteligência artificial

O espectro da IA rondou o mundo dos livros em 2023. Em novembro, uma edição luxuosa de “Frankenstein”, publicada pelo Clube da Literatura Clássica, foi excluída do 65º Prêmio Jabuti porque o ilustrador, o designer Vicente Pessôa, criou as imagens usando IA generativa. O júri alegou não saber que os desenhos haviam sido produzidos por IA. A desclassificação do livro foi comemorada por ilustradores (que temem o avanço da IA sobre seu ofício) e criticada por estudiosos. A Câmara Brasileira do Livro afirmou que “a questão da IA” erá contemplada na próxima edição do prêmio.

O indígena imortal

Em setembro, o pensador Ailton Krenak se tornou o primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras. O autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” substituiu o historiador José Murilo de Carvalho, morto em agosto. O novo imortal disputou a cadeira 5 da Casa de Machado de Assis com outro escritor indígena, Daniel Munduruku, que já havia tentado ingressar na ABL anos atrás (com o apoio do próprio Krenak). A eleição do líder indígena atesta que a mais tradicional instituição da literatura brasileira está atenta ao clamor por mais diversidade.

Mais diversidade (mas nem tanto)

A diversidade continua em alta no mercado editorial — e as críticas ao chamado “identitarismo” também. A Flip apostou novamente em autores menos conhecidos e não faltou quem reclamasse que faltaram “estrelas” na programação. O Jabuti premiou sobretudo homens brancos. E cada vez mais autores têm criticado publicamente a “literatura identitária”. Nem o best-seller Itamar Vieira Junior escapou. “Salvar o fogo”, seu novo romance, teve recepção morna e resenhas polêmicas. A Universidade de São Paulo anunciou que, entre 2026 e 2028, só vai cobrar livros de autoras mulheres no vestibular. Houve celebração e houve crítica (inclusive de professores da instituição).

Editoras independentes buscam soluções

O aumento dos custos de produção (sobretudo do papel) estremeceu o modelo de negócio de várias editoras independentes que floresceram no período anterior à pandemia: o financiamento colaborativo. A vaquinha ameaçou ir para o brejo... Em contrapartida, a busca por soluções criativas confirmou a vitalidade do setor, que voltou a dar atenção a uma tecnologia popularizada ainda no século XVI: as plaquetes, livrinhos de poucas páginas, impressos de forma artesanal e com apuro visual, ideais para a publicação de novos autores, poesia e projetos pouco convencionais.

Audiolivros avançam

A chegada da Audible, plataforma de audiolivros da Amazon, ao Brasil, em outubro, reavivou as esperanças de que o formato finalmente deslanche no país. Por R$ 19,90 mensais, os assinantes têm acesso a um catálogo de mais de 100 mil títulos e a outros 500 mil que podem ser adquiridos à parte. “A mulher em mim”, biografia de Britney Spears, foi o título mais ouvido. Focada no público deficiente visual, a Supersônica é outro serviço de audiolivros que estreou este ano. O catálogo inclui títulos como “O acontecimento”, de Annie Ernaux, narrado pela atriz Isabel Teixeira.

Estilhaços da guerra

O mundo editorial não passou incólume ao conflito entre Israel e Hamas. Em outubro, dias após o ataque terrorista, sob protestos de editores e escritores do mundo todo, a Feira do Livro de Frankfurt cancelou uma homenagem à palestina Adania Shibli. Este mês, a fundação alemã Heinrich Böhl, patrocinadora do Prêmio Hannah Arendt, se retirou da cerimônia de entrega a Masha Gessen, pessoa não binária russo-americana. Em artigo na revista The New Yorker, Gessen, cuja família foi morta no Holocausto, comparou a situação da população de Gaza à dos judeus confinados em guetos nazistas. Já a escritora peruana Gabriela Wiener preferiu cancelar sua participação no Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo. A organização do festival reclamou da “equivocada e perigosa associação entre um governo e um povo”.

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