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Por , Especial para O GLOBO

Heitor está em pânico no meio da multidão. Ele cruza com foliões bêbados e pessoas ensandecidas que o espremem em pleno carnaval. No contrafluxo, busca os amigos, em vão. No caminho até o ponto de táxi, sua fantasia se desfaz. “Suas penas caem ao longo da calçada vazia de gente, mas cheia de garrafas e latas, restos de carnaval. A maquiagem no rosto borrada, as pernas bamboleando quando chega ao carro. O taxista pergunta se ele se divertiu e ele demora tanto para responder que os dois fingem que nenhuma tentativa de diálogo existiu”, narra Fernando Rinaldi em “Dueto dos ausentes”.

Em seu romance de estreia, o autor traz duas tramas paralelas e complementares. A de Heitor, jovem que nunca conheceu o pai e imagina uma narrativa para suprir a falta dele; e a de Hélio, que atravessa um luto depois da morte do filho. Os dois personagens criam ficções dentro do próprio livro: Heitor discorre sobre um pai chamado Élio; Hélio, sobre o fantasma do filho Eitor. Nos dois casos, a subtração do H simboliza a ausência do ente querido.

A partir das ruminações do psicanalista Hélio (em situações-limite, o personagem gagueja e fica afônico), abre-se um estado permanente para pensamentos intrusivos. Essa cacofonia da mente é reconstituída por meio da relação com a força do mar, como quando ele observa um grotão próximo de uma praia portuguesa e vê ondas “desabando na cavidade escavada pela água”.

Ao longo do romance, o litoral surge como cenário definidor para a vida de Eitor, que passa verões na casa de amigos da mãe. Lá, ele mergulha na solidão típica dos meninos em conflito com a própria sexualidade. Já Élio, às vésperas do nascimento do filho, tem um affair com um congolense em Paris e precisa lidar com suas expectativas a respeito dos encontros furtivos.

Hora de submergir

Na literatura queer, há uma imagem central para representar esse momento de solidão, definido como “o mergulho”. Escritores como Christopher Isherwood e Alan Hollinghurst inseriram em suas tramas esse momento da submersão. Fosse em piscinas ou no mar, a cena se tornou sinônimo de introspecção na vida de personagens gays a ponto de ganhar, na década de 1970, uma famosa pintura de David Hockney, “Retrato de um artista (Piscina com duas figuras)”, de 1972. Esse momento de suspensão se prolonga em várias cenas de “Dueto”.

O encontro de Élio com Hector, o jovem ator, começa quando ele chega para um congresso na capital francesa. Nas semanas que seguem, o brasileiro desenvolve uma obsessão pelo homem. Seus planos mudam e, metódico, ele vai ao limite, “arranca seu relógio de pulso e o joga no chão, tomado por uma fúria que até então desconhecia.” Rinaldi age nos detalhes.

O luto se materializa na vida destas figuras, que têm de suportar as perdas e os processos dolorosos entre funerais e crises agudas. Em uma cena, Rinaldi narra um momento de pânico noturno, patologia real que dá força ao relato ficcional. “Sufoco, palpitação, suor. Tudo isso vai acabar. Não conseguia ficar parado na cama, fingindo que procura o sono. Um dia nada disso existirá. Levanta-se de supetão e anda pelo quarto até aquela angústia terrível passar… voltar a se deitar seria como atrair de novo aquele pensamentos, então densidade sair dali, abrir com cuidado a porta do seu quarto, atravessar o escuro.”

À base de remédios, os protagonistas Hélio e Heitor decidem projetar em Eitor e Élio homens cerebrais, complexados e com problemas de autoaceitação. Como em uma sessão de análise às avessas, as neuroses são pistas para decifrar seus estados de espírito. A psicanálise surge então como um placebo que não acalenta, mas coloca em xeque tudo ao redor.

Matheus Lopes Quirino é jornalista

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‘Dueto dos ausentes’ Autor: Fernando Rinaldi. Editora: Reformatório. Páginas: 288. Preço: R$ 64.

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