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Por — São Paulo

Na pandemia, o escritor Marcelo Ferroni inventou uma narrativa de terror: Marco, um professor de história, é convocado a passar a noite com o pai, idoso e enfermo, num apartamento antigo. E o insólito começa a acontecer. A empregada deixa escapar que a cuidadora do patrão se demitiu porque não suportava mais ouvir gritos e risadas ao longo do período noturno. Marco até ouve uma barulheira sinistra, mas suspeita que sejam só os galhos das árvores na tempestade. A casa parece mal-assombrada. As luzes piscam, os eletrodomésticos parecem ganhar vida própria. Mas tudo fica mais assustador quando são desvendadas relações do passado da família Soares Lobo. O avô, Irineu, abraçara o integralismo (movimento influenciado pelo fascismo europeu) e o pai, Abel, trabalhou para a ditadura e ostentava uma fotografia sua com um ex-presidente da época dos anos de chumbo na sala de casa. Após a redemocratização, ele manteve negócios escusos com políticos e criminosos. Não é de estranhar, portanto, que o velho seja atormentado por fantasmas do passado.

“A febre”, sexto romance do autor, vai e volta no tempo a toda hora, revelando aos pouquinhos os segredos da família. Até o fim, mantém-se o mistério característico das histórias de terror: estamos ou não diante do sobrenatural? Independentemente da resposta, o que assusta é como a dinâmica familiar dos Soares Lobo se ligava à violência que caracterizou não só a ditadura militar, mas a história brasileira em geral.

Violência, ditadura, milícias

— Escritores de terror também trabalham com a realidade. E qual é a realidade do Brasil? Distopia, violência, terror, desigualdade, ditadura, volta da extrema direita, crise ecológica, milícias — diz Ferroni, que também é publisher do Grupo Companhia das Letras. — No Brasil, o difícil é escrever uma história de terror que seja puro entretenimento, sem falar de política.

De fato, cada vez mais autores têm se inspirado no que há de pior na experiência brasileira para criar histórias que metem medo: Bruno Ribeiro enfrenta o racismo no romance “Porco de raça” (Darkside), Verena Cavalcante aborda a violência que atinge crianças dentro de casa em “Inventário de predadores domésticos” (Darkside), Ana Paula Maia expõe a desumanização dos trabalhadores em títulos como “De gados e homens” (Record). Essa literatura macabra reforça um movimento que despontou nos países vizinhos e deu prestígio internacional a nomes como Mariana Enríquez (Argentina), Giovanna Rivero (Bolívia) e Maria Fernanda Ampuero (Equador). Ao GLOBO, Ferroni diz que a realidade brasileira oferece matéria-prima em abundância para quem quer escrever histórias que metem medo.

Pesquisador e autor da newsletter Espeluznante, André Araujo lembra que “o horror é um gênero frutífero para falar de questões próprias da nossa realidade política que não são discutidas abertamente”.

— A literatura de terror é capaz de diagnosticar o que, na nossa realidade, é profundamente incômodo, violento e aterrorizante. Não à toa, a melhor literatura de horror contemporânea é produzida na América Latina — diz ele. — Nossos autores recorrem à estética do horror para reconstituir nossa experiência histórica e para desnaturalizar aquilo que tomamos como “business as usual”: a estrutura patriarcal, a desigualdade, a violência da colonização e das ditaduras. Nossa história é cheia de fantasmas.

Uma das estratégias dos autores contemporâneos, observa Araujo, é politizar convenções do terror. A equatoriana Mónica Ojeda, por exemplo, recupera a figura da bruxa para tratar da violência de gênero no conto “Sangue coagulado”. Para Ferroni (e também para Mariana Enríquez), casas mal-assombradas remetem às ditaduras. Outro recurso, acrescenta o pesquisador, é se inspirar no folclore regional, como fazem o potiguar Márcio Benjamin e o paraibano Cristhiano Aguiar. Nos contos de “Gótico nordestino”, Aguiar escala zumbis (que ele chama de “lázaros”, como o personagem bíblico que Jesus ressuscitou), cangaceiros e vampiros para encenar o que ele descreve como “um road movie macabro da história do Brasil”, que inclui ditadura militar, pandemia e apocalipse climático.

— O terror acessa os nossos traumas e tabus, vasculha os porões da nossa imaginação, individual e social, abre os armários onde guardamos nossos esqueletos. O “Frankenstein”, de Mary Shelley (1818), já falava de ansiedades sociais causadas pelo desenvolvimento da ciência moderna — afirma Aguiar.

Aguiar está trabalhando três novelas de terror que vão abordar temas como crise ecológica, polarização política e racismo. Ele acredita que o gênero acabou mais associado ao entretenimento “porque o que mais consumimos é um terror meio fast-food, filmes de psicopata e serial killer que vemos no cinema do shopping no fim de semana”.

Autor de “O breu povoado” (Avec), Oscar Nestarez concorda:

— A massificação dos filmes de terror impôs novas fórmulas que não incorporam tanto os contextos históricos e sociais. Assustar passou a ser a única função dessas histórias de terror.

Junto com o pesquisador Júlio França, Nestarez organizou “Tênebra: narrativas brasileiras de horror (1839-1899)”, reunião da ficção macabra produzida por autores como Machado de Assis, Olavo Bilac e Júlia Lopes de Almeida. Em 2025, chega às livrarias um novo volume, com ficções da primeira metade do século XX. “Tênebra” nasceu como uma plataforma on-line que divulga contos brasileiros “para ler com a luz acesa”.

Embora nossa literatura de terror sempre tenha tratado de temas como a escravidão e a opressão feminina, ao formatar o cânone, a crítica privilegiou obras que refletissem a identidade e os problemas nacionais seguindo a estética realista, sem excentricidades góticas. Mas esse tempo já passou. Nas universidades, multiplicam-se grupos de estudos da literatura de terror, que já é publicada por editoras prestigiadas e defendida por autores que vendem bem e acumulam prêmios, como Raphael Montes e Ana Paula Maia. “Gótico nordestino” levou o Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, e já esgotou quatro tiragens.

Os autores ouvidos pelo GLOBO listam um punhado de razões para explicar o sucesso da ficção trevosa entre nós, como a sucessão de crises, a influência de autoras latino-americanas (principalmente de Mariana Enríquez) e também de Stephen King, best-seller que vem sendo reconhecido como um intérprete dos medos da sociedade americana e responsável por renovar o gênero.

— Eu e vários autores nos tornamos leitores graças à literatura de entretenimento, ao terror e à ficção científica. Li muito Stephen King. Com 13, 14 anos, eu queria ser escritor de terror — conta Ferroni, que agora prepara uma novela com uma piscina mal-assombrada. — Quero falar sobre o turismo que arrasa os lugares por onde passa, deixando fantasmas para trás.

Serviço:

‘A febre’

Autor: Marcelo Ferroni. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 192. Preço: R$ 74,90.

‘Gótico nordestino’

Autor: Cristhiano Aguiar. Editora: Alfaguara. Páginas: 136. Preço: R$ 54,90.

‘Tênebra: narrativas brasileiras de horror (1839-1899)’

Organizadores: Júlio França e Oscar Nestarez. Editora: Fósforo. Páginas: 456. Preço: R$ 89,90.

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