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Há quase um século, Agatha Christie indignou puristas em “O assassinato de Roger Ackroyd”. Na obra de 1926, a “dama do crime” usa um narrador muito menos confiável do que parece ser, subvertendo a clássica história de detetive.

O clássico acaba se transformando em pista para desvendar a trama de “Os pecados de West Heart”. Sucesso de público nos Estados Unidos no ano passado, o romance policial do americano Dann McDorman, que está sendo adaptado para a Broadway, acaba de ser lançado no Brasil. Devoto de Christie, o jornalista americano ousou, em seu primeiro passeio pelo bosque da ficção, ir além.

McDormann brinca sem medo com estrutura e narração. Implode a quarta parede. Deixa autor e leitores em posições para lá de suspeitas após a sequência de mortes ocorridas em três dias durante um feriado de verão em um clube de caça de elite nos anos 1970 no norte do estado de Nova York.

Em entrevista por videochamada de sua casa no Brooklyn, em Nova York, McDorman cita suas influências, que inclui os suspeitos de sempre e alguns convidados da alta literatura:

— Meu livro tem quatro pais: a Agatha Christie das histórias do detetive Hercule Poirot, o Dashiel Hammett de “Tiros na noite” e “O falcão maltês”, o Ítalo Calvino de “Se um viajante numa noite de inverno” e toda a obra de Jorge Luis Borges.

Apelo mortal

Elementar, mas nem tanto assim. McDorman desafia e anima o leitor ao comungar com o autor seu conhecimento nérdico da literatura do crime. E, ao mesmo tempo, em interrogatório imaginário, nos indaga: por que seguimos tão interessados em histórias calcadas em violência e morte? Quais as razões mais profundas de nosso amor por Sherlock Holmes, Miss Marple, Sam Spade e Dupin, sem jamais, claro, esquecer que o assassino sempre foi o Coronel Mostarda, na biblioteca, usando uma chave inglesa. Ou não?

— Em West Heart, todos têm, de certa forma, culpa por algo, mesmo que não seja necessariamente um assassinato — explica o escritor. — Daí os pecados do título da versão brasileira (o original, “West Heart kill”, brinca com dois usos de kill, “matança” e “riacho”, que não faria sentido em português). É como na vida aqui fora, só que no livro eles estão na clássica situação de “quarto fechado”, presos no clube com um ou mais assassinos, após uma tempestade. Somos forçados, todos, a resolver problemas urgentes. E nada mais urgente do que a morte.

Barba por fazer, óculos de aros pretos, cabelo desgrenhado, McDorman é um sujeito boa-praça de 47 anos, apontado não por acaso pelo New York Times como o “vencedor da loteria de meia-idade”, referência à sua estreia tardia e arrebatadora na literatura.

Produtor — “nas horas não vagas”, brinca — do jornalístico “The beat with Ari Melber”, da rede MSNB, pelo qual foi indicado ao Emmy, McDorman tem origem irlandesa e é o primeiro de sua família com um diploma universitário.

Após ler todo cânone do gênero e rascunhar na adolescência histórias de detetive jamais publicadas (e jogadas no lixo), McDorman abandonou pretensões literárias e se dedicou ao jornalismo, “ganha-pão possível”. Poderia, assim, mergulhar em outros enigmas.

— Nunca tinham me perguntado isso, mas de certa forma, creio, jornalistas e detetives são sim parentes próximos — diz o autor. — Hoje, quando coordeno a investigação de uma história, como os processos contra Donald Trump que podem decidir as eleições americanas, penso nos personagens, no que fazem, no que não fazem e, claro, no que não querem que a gente saiba que eles fizeram. Técnicas de investigação assim são muito bem-vindas.

Sonho inspirador

Curiosamente, foi em um sonho que “Os pecados de West Heart” começou a tomar forma. O jornalista passava uns dias em um clube, convidado por um amigo, quando lhe veio a imagem de uma parede com imagens de presidentes da instituição, com um espaço vazio. E o vácuo correspondia a um momento histórico significativo, no entre-guerras, período de explosão do supremacismo branco nos Estados Unidos. Daí foi um pulo para colocar na cena do crime o detetive Adam McAnnis (avança uma casa quem sacar o paralelo entre os nomes de protagonista e escritor).

McAnnis é um trintão de sua época, um sujeito oriundo de classes menos favorecidas que ultrapassa os limites esperados de um investigador-padrão: se envolve com uma suspeita, divide baseados com outra, foi contratado secretamente por um determinado personagem. Ou seria por outro?

— Fui escrevendo quando dava. Borges era famoso por gostar mais de escrever resumos da trama do que o livro em si. Eu imaginei as orelhas e me dei por satisfeito. Foi minha mulher quem me disse: Dann, tem uma história aí. Não é que tinha?

Ricos e desigualdade social

Em referência direta a Agatha Christie, Dann McDormann apresenta, logo no início da trama, um dramatis personae, ou seja, a lista de quem é quem em West Heart no fim de semana em que três possíveis assassinatos foram cometidos no clube de luxo.

Além do já mencionado detetive McAnnis, são muito bem construídas as famílias donas de cabanas de luxo no local. Os Garamond contam com o presidente do clube, John, pressionado pelos associados para vender a propriedade. Os Mayer e os Caldwell têm uma história trágica em comum. Os Blake guardam um segredo que pode estar relacionado ao passado autoritário dos Estados Unidos pré-guerra. Os Burr são um capítulo à parte, intrincados no cada vez mais complexo mundo financeiro e protagonistas de um casamento repleto de silêncios. Susan Burr é uma mulher quase livre, que sofre com as limitações da época. Já entre os Talbot é preciso prestar atenção em Reginaldo, o tesoureiro do clube, que, curiosamente, não tem apenas um livro-caixa, mas dois.

Assim como em franquias de filmes como “Entre facas e segredos” e em séries como “White lotus”, “West Heart” se debruça sobre a vida dos ricos e seus segredos, como já indica o título do livro em português.

— Sim, definitivamente. Queria dar relevância ao livro, mesmo que ambientado nos anos de (Richard) Nixon e (Gerald) Ford nos anos 1970 nos Estados Unidos e, em flashback, no entre-guerras, momentos em que havia um desgaste nas instituições, ainda que diferente do dos dias de hoje. É, de certa forma, ficção histórica — diz McDorman — E a riqueza e o privilégio dos personagens são centrais para entender a motivação de todos, inclusive do detetive. Tratar da desigualdade social é, hoje, para mim, inevitável.

O produtor premiado da MSNBC preparou, logo após a conversa com o GLOBO, uma longa entrevista com um mago das campanhas eleitorais americanas, James Carvile. Ele foi o autor da emblemática frase “é a economia, estúpido”, que indicava como a militância democrata deveria enfrentar em 1992 o incumbente republicano George Bush pai, às voltas com enorme recessão.

Atento ao cenário político de Iowa e de olho na primária de amanhã, em New Hampshire, Carville prestou menos atenção nos 51% de votos de Trump e mais nos 49% que optaram por outros candidatos, e pediu atenção especial à embaixadora Nikki Haley, que pode ser aquele personagem por quem você não dá nada... até um plot twist daqueles encontrados no livro de Dann McDorman.

  • "Os pecados de West Heart"
  • Autor: Dann McDormann.
  • Tradutor: Jaime Biaggio.
  • Editora: Intrínseca.
  • Páginas: 269.
  • Preço: R$ 59,90.

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