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Por — São Paulo

Respeitado internacionalmente, o escritor cubano Leonardo Padura tem uma obra traduzida em mais de 15 países, vencedora de diversos prêmios e adaptada para cinema e TV. Aqui no Brasil, por exemplo, seu romance “O homem que amava os cachorros” (sobre o assassinato de Trostky por agentes de Stalin) é muito bem cotado desde que foi lançado, em 2015. Em Cuba, porém, onde vive o escritor, seus livros demoram para ser publicados e quase não recebem atenção da imprensa. É um processo de invisibilidade, como ele próprio denomina.

— Pago um preço pelo que digo, escrevo, penso, mas não posso fazer diferente — diz o autor ao GLOBO, via e-mail.

A obra de Padura joga habilmente com o passado para, na verdade, refletir sobre o presente, principalmente o de Cuba. Em “Pessoas decentes”, seu mais recente romance (editado aqui pela Boitempo Editorial, como seus outros títulos), o investigador Mario Conde está de volta para investigar o assassinato (fictício) de um político da ilha, em 2016, justamente durante a visita do então presidente americano Barack Obama.

Desde sua estreia, com “Passado perfeito” (1991), Conde solidificou a imagem de ser representante de uma espécie rara de policiais durões, aqueles cuja metodologia escapa à lógica dedutiva típica dos primeiros detetives do gênero. E sofre com restrições impostas pelo modelo cubano, que dificultam, por exemplo, ter um telefone celular.

— Em 65 anos da Revolução Cubana, muitos sonhos, utopias e promessas se esgotaram ou não se concretizaram — diz Padura, de 68 anos.

Seguem, abaixo, alguns trechos da conversa do autor com o GLOBO.

No seu novo livro, “Pessoas decentes”, Mario Conde investiga o assassinato de um homem apontado como “a encarnação de um carrasco da intelectualidade cubana” nos anos 1970. Este personagem é real?

A figura existiu. O personagem, não. É uma síntese de várias pessoas reais que exerceram a censura, a marginalização, o cancelamento, e que levaram à morte civil de centenas de criadores, intelectuais, professores, em resposta a uma política oficial que ditava “parâmetros” que deviam ser cumpridos na sociedade socialista cubana. O personagem é uma possibilidade, talvez ampliada, certamente concentrada, dessas pessoas, de suas ações e de seu modo de pensar.

A primeira aventura de Mario Conde, em “Passado perfeito”, acontece em 1989, ano da queda do Muro de Berlim e de grave crise em Cuba. “Pessoas decentes” se passa em 2016, quando Obama visitou Cuba. O que mudou?

A situação mudou, e muito, na sociedade. Os cubanos de 1989 e os de 2016, ou os de 2024, são muito diferentes. Agora as pessoas não são crédulas, querem ter dinheiro, saem do país. Mas, como a estrutura econômica e política é a mesma, a impressão geral é que a situação não muda. E há coisas que permanecem: o controle da sociedade, o protagonismo do partido único (comunista) etc. Mas procuro trazer para os romances o contexto histórico específico. Em 1990, quando escrevi “Passado perfeito”, eu não poderia ter imaginado — ninguém imaginaria — que um presidente norte-americano negro visitaria Cuba. De resto, o desgaste do modelo, a falta de confiança da população, a maior circulação de informação, tudo influencia pessoas e personagens como Conde, que tem respostas geralmente pessimistas, porque ele é, acima de tudo, um realista.

Como escritor, o senhor vive o conflito entre “realidade e memória”?

Esse é um conflito necessário, que alimenta a literatura. O escritor é um depósito de memórias. O grande drama de Hemingway, aquele que o levou ao suicídio, não foi sua deterioração física, mas a mental: a memória falhava, e o que é um escritor sem memória? Na memória, há muita idealização da realidade, positiva ou negativa, porque ela é seletiva, e na percepção da realidade há sempre uma carga de subjetividade com muitas arestas.

Seus romances demoram a chegar às livrarias cubanas e não costumam ser citados na imprensa local. O que pode dizer sobre este “processo de invisibilidade”, como o senhor mesmo o chamou?

É uma resposta das instituições oficiais cubanas a um tipo de literatura e a opiniões sociais e políticas que não agradam à ortodoxia do pensamento único. Pago um preço pelo que digo, escrevo, penso, mas não posso fazer diferente. Não sei se a minha verdade é a mais verdadeira, mas creio que é bastante parecida com a que vejo e a que vivo, assim como muitos cubanos. É lamentável que, seja qual for o motivo (falam de falta de papel, o que é real), entre todos os países de língua espanhola, é em Cuba onde os leitores não têm acesso normal aos meus livros porque (acredito) alguém considera que não são apropriados para esses leitores.

Cuba celebrou o 65º aniversário da Revolução em 1º de janeiro. Como você avalia esse período histórico?

Novamente suas perguntas complicadas... Sintetizar um processo como o cubano, depois de 65 anos, seria longo e complicado. Posso dizer, ao menos, que 65 anos depois a estrutura política e econômica do país, que após alguns anos adotou o modelo soviético, permanece a mesma: partido único no poder, a grande economia nas mãos do Estado. Houve algumas mudanças nestes anos, como o surgimento de pequenas empresas privadas, maior liberdade para viajar, acesso (ainda que tardio) à internet, o que provocou mudanças sociais, no meio de uma situação econômica que revelou mais uma vez e de forma muito dramática a ineficiência do sistema. E tudo isso provoca um efeito muito doloroso que terá consequências para a nação: a emigração de centenas de milhares de cubanos (cerca de 700 mil em dois anos, em uma população de sete milhões), a maior parte deles jovens e qualificados. Em suma, 65 anos depois, muitos sonhos, utopias e promessas se esgotaram ou não se concretizaram.

Qual a sua opinião sobre a inteligência artificial? Há razões para temê-la?

Sim, há muitas. E, como não entendo muito do assunto (sou pré-informática), digo apenas que é como uma faca. Se você usá-la para cortar algo, é um objeto útil; mas, se usá-la para atacar alguém, é arma de um crime. O mesmo pode acontecer com a inteligência artificial, que, aliás, é uma ameaça muito específica para a minha profissão de criar literatura.

O senhor já usou o ChatGPT?

Não, nunca usei. Também não tenho Facebook nem Instagram. Sou um troglodita, enfim, um pouco parecido com Mario Conde.

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