O banheiro sem janela vira esconderijo; a máquina de lavar se transforma em escudo durante tiroteio — que acontece de dia, na hora de estudar. Estes depoimentos aparecem no livro infantil “Eu devia estar na escola”, feito a partir de relatos de crianças das favelas do Complexo da Maré, no Rio (alguns deles reproduzidos nesta página). Editado pela Caixote, em parceria com a ONG Redes da Maré, a obra será lançada nesta sexta-feira na própria comunidade, na Areninha Cultural Herbert Vianna, às 15h; e no sábado, na Livraria Pequeno Benjamin, em Ipanema, no mesmo horário.
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O livro nasceu a partir de uma ação da ONG, organizada em 2019, que pediu a moradores — adultos e crianças — que escrevessem cartas para o Tribunal de Justiça do Rio contando a realidade das favelas durante as operações policiais. Na época, o então governador Wilson Witzel tentava derrubar a Ação Civil Pública (ACP), em vigor desde 2017, que previa regras para reduzir a letalidade de incursões da polícia, como só acontecerem de dia, com a presença de ambulâncias, longe de escolas e centros de saúde.
—Ele começou a fazer operações com muita letalidade, e as crianças ficavam vários dias sem aula — conta Eliana Sousa Silva, fundadora e diretora da ONG. — Pensamos o que podíamos fazer para chamar a atenção para essa violação de direitos, e veio a ideia das cartas para serem entregues aos desembargadores do TJ.
Editora de livros infantis em São Paulo, Isabel Malzoni viu parte do material reproduzida no jornal EXTRA e percebeu nele o meio ideal de tocar no assunto da violência urbana com um público variado de crianças, algo que ela pensava desde o assassinato de Marcos Vinícius. Ele tinha 14 anos e voltava da escola quando foi baleado pela PM, na própria Maré, em 2018. Antes de morrer, sussurrou para a mãe: “Eles não viram o uniforme?”
— Na última década, a literatura infantil tem discutido como falar sobre assuntos difíceis — diz Isabel. — Nós (o Brasil) até publicamos bastante. Porém, são sempre temas distantes, guerras em países longínquos, mas nunca as nossas próprias mazelas. Pensava muito em como fazer um livro para crianças sobre a violência estatal daqui. E quando vi os desenhos no jornal, falei: “É isso, são as crianças que precisam contar.”
Donos da história
Para todos os envolvidos, era imprescindível que as crianças fossem as autoras da obra — por isso, parte dos direitos autorais está destinada a projetos infantojuvenis da comunidade. Mas a pandemia atrasou o projeto, e o contato de muitos jovens foi perdido. No entanto, as suspensões de aulas por causa da violência, quando o livro foi retomado, continuaram. De 2016 até este mês, segundo a Redes, foram 152 dias letivos perdidos, sem reposição. Então, a ONG e a Caixote aproveitaram o II Congresso Falando sobre Segurança Pública com Crianças e Adolescentes da Maré, realizado em e 2023, para complementar os desenhos e as narrativas que faltavam.
— Infelizmente, o contexto continua o mesmo de 2019 — diz Eliana, atenta para não expor as crianças. — Minha preocupação é que não houvesse “exotização” do processo. Precisamos falar do trauma da violação de direitos da infância, mas que não sejam vistas como coitadinhas. Pelo contrário, as crianças estão reagindo.