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Por — Rio de Janeiro

A vergonha sempre foi um recurso valioso para vender produtos, de cremes contra envelhecimento a remédios para emagrecer. Na era das tretas em redes sociais e das indignações medidas por likes, porém, ela virou matéria-prima para as gigantes da tecnologia lucrarem em cima da divisão social e da deterioração da democracia.

É o que afirma a cientista de dados e doutora em Matemática pela Universidade de Harvard Cathy O’Neill. Em seu recém-lançado “A máquina da vergonha” (Rua do Sabão), a americana mostra como a humilhação se tornou um evento global, acompanhado em tempo real por consumidores do mundo todo. As empresas, explica a autora, aproveitam a fragmentação para nos jogar uns contra os outros. Brigas se tornaram um hábito viciante, estimuladas por campanhas irresistíveis aos “guardiões” da moral.

As consequências vão muito além do tempo perdido na frente das telas. A “máquina” está mudando aquilo que aceitamos como verdade, influenciando nossa maneira de pensar e de consumir, e enfraquecendo nossa representação social.

— É exaustivo pensar nisso, mas acho que todos nós experimentamos a sensação de que estamos apenas gritando para o vazio — diz a americana, de 52 anos, em entrevista por videoconferência.

Qual a sua definição de vergonha?

Vergonha pode parecer um sentimento muito pessoal, uma noção muito íntima. Mas, no fim das contas, a vergonha acontece quando somos punidos por quebrar uma norma social. Ela nos provoca um sentimento de que não estávamos à altura do que é esperado. É uma situação social que nos afeta muito, pois envolve ser aceito pelos nossos pares, nossos colegas.

Por que estamos agora em uma nova era da vergonha?

O cenário se transformou na era das redes sociais. Explico no livro que, no contexto do X (antigo Twitter), as normas podem mudar muito mais rapidamente entre pequenos grupos de pessoas, e isso faz com que eles se afastem de grupos maiores. Quando um grupo decide mudar uma norma, outro pode discordar, o que provoca conflitos constantes e estimula a formação de guardiões dessas normas. E essas pessoas são recompensadas (com visibilidade e monetização) quando envergonham os seus alvos. O que temos que entender é que as redes sociais foram projetadas, mesmo que não intencionalmente, de uma maneira que acentua e enfatiza as nossas diferenças.

Quanto mais envergonhamos os outros nas redes, maior o lucro das big techs?

As brigas e discussões nas redes nunca param porque as redes foram projetadas para isso. Daí a importância de pararmos para pensar o que estamos fazendo quando envergonhamos os nossos alvos. Estamos tentando mudar a maneira como a outra pessoa pensa e se comporta ou estamos apenas sinalizando virtude? O que coloco no livro é que o ecossistema das redes nos direciona para a segunda opção, nos fazendo atacar alvos mais fracos do que nós. Em resumo, estamos envergonhando alguém sem lhe dar chances de se redimir ou melhorar. Ou seja, o objetivo não é mudar uma pessoa, mas torná-la exemplo para as outras: “Não seja como essa pessoa, senão você será envergonhado também.”

No livro, você usa de forma recorrente a expressão “sinalização de virtude”. Como ele se aplica nesse contexto?

Em todas as redes sociais, você se sente recompensado quando acha que foi virtuoso ao exercer sua própria justiça. Porque você está dizendo que conhece as regras e que vai garantir que todo mundo saiba que regras são essas.

A autora americana Cathy O'Neil — Foto: Divulgação
A autora americana Cathy O'Neil — Foto: Divulgação

A vergonha também pode ser produtiva?

Creio que viveríamos melhor se nos concentrássemos no primeiro objetivo da vergonha, que é tentar fazer uma pessoa específica mudar para melhor. Se você realmente quer fazer isso, não será publicamente, mas sim numa conversa privada. Dessa forma, em vez de fazer um espetáculo de si, como as redes sociais incentivam, você estará persuadindo alguém, individualmente, a mudar seu comportamento. Outra coisa importante é que o seu alvo tenha uma voz. Em vez de atacar pessoas mais fracas, atacar poderosos.

E qual a melhor forma de cobrar uma figura pública?

No livro, dou exemplos de como você pode agir de maneira positiva ao atacar poderosos. Isso requer duas coisas que são incomuns, especialmente nas redes sociais. A primeira coisa é que a pessoa que você está envergonhando realmente tenha a escolha de poder melhorar. Muitos exemplos que temos são de pessoas sendo humilhadas por serem velhas, gordas e outras coisas que literalmente elas não podem controlar. Com tanta coisa para criticar em Donald Trump, qual o sentido de fazer troça do corpo dele? Uma boa maneira de envergonhar alguém em posição de poder é responsabilizar os políticos por suas promessas de campanha, por exemplo.

Falando em políticos, como essa máquina de vergonha pode afetar a maneira como as pessoas se relacionam com a política e escolhem seus representantes?

As plataformas digitais estão nos polarizando, nos dividindo em grupos pequenos, como já mencionei. A dinâmica das redes acaba encorajando esses grupos a não confiar nos outros, a não conversar com os outros e certamente a não votar como os outros. E isso é muito eficaz porque tendemos a confiar nos nossos pares e, quando sentimos que estamos em um grupo que pensa de uma maneira, tendemos a votar com os valores desse grupo. Isso é lucrativo para as empresas de mídia social e também é muito eficaz para os anunciantes que estão tentando nos envergonhar.

Esta conjuntura de fragmentação das normas favorece políticos menos consensuais e mais sectários, que nunca se elegeriam num passado recente?

Sim. Isso é resultado do microdirecionamento, presente não só nas empresas de mídia social, mas na mídia de forma geral. Isso permite que campanhas políticas entreguem mensagens personalizadas para indivíduos. Mesmo se você e eu morarmos no mesmo bairro e essencialmente fizermos as mesmas coisas, as mensagens direcionadas para nós podem ser totalmente diferentes. É um problema real para a democracia, porque o público cada vez mais consome mensagens diretas dos políticos, e cada vez menos da mídia. Mesmo se visitarem o site de um político, o conteúdo aparecerá de forma personalizada para os eleitores, com base em seus cookies.

Capa de "A máquina da vergonha" — Foto: Divulgação
Capa de "A máquina da vergonha" — Foto: Divulgação

Paradoxalmente, o novo sistema de informação pode ter favorecido aqueles que não se importam em quebrar as normas, e que por isso são imunes à vergonha?

Sim, se o seu alvo não se importa ou não concorda com as normas, nada do que falamos contra ele faz efeito. Trump, por exemplo, usa vergonha como combustível. As normas se bifurcaram e se fragmentaram com tanta rapidez entre os grupos que é quase como se o único objetivo de cada grupo fosse provocar uma reação no outro. É uma revolta e um divertimento com as normas alheias. E eu não vejo isso acabando tão cedo.

De alguma forma, você também não está tentando envergonhar as corporações de mídia social com o seu livro? Não existe uma contradição nisso?

Só para deixar claro: eu não escrevi o livro esperando que as pessoas mudem de ideia, escrevi tentando apontar os problemas. As empresas de mídia social estão lucrando com a fragmentação de nossa cultura, então estou mesmo tentando, em última análise, envergonhá-las. Mas estou criticando empresas poderosas, não apontando a mão para todo mundo que é viciado em redes sociais.

Qual é a sua relação com as redes sociais?

Eu era viciada no Twitter. Não é uma sensação muito boa, porque você entra todo dia se perguntando quem será alvo hoje, quem será cancelado hoje. Todo dia se perguntando: aquela pessoa merece isso? Devo me envolver? É um esporte sanguinário, vicioso, que você de alguma forma se viu envolvido em se importar. Foi difícil deixar para trás, mas saí no dia em que Elon Musk declarou que ia comprar o Twitter e estou muito, muito feliz por ter saído. Minha vida melhorou.

Como vê as queixas sobre cultura do cancelamento?

Qualquer pessoa que esteja reclamando de cultura do cancelamento em uma grande tribuna tem, por definição, uma voz, certo? Não estou dizendo que o cancelamento não seja uma coisa real. A questão é que não faz sentido um cara branco escrever um artigo em um jornal importante ou ir para a televisão dizer que é alvo de cancelado. Se você tem espaço para reclamar, então como isso pode ser um cancelamento? Eu costumava trabalhar em um programa de alimentação em Boston. Lidava com jovens negros que eram apenas alguns anos mais novos que eu. Todos eles tinham pais viciados em crack e todos eles estão na prisão agora. Se você quer falar sobre pessoas que foram canceladas, fale dessas crianças. (Bolívar Torres)

‘A máquina da vergonha’

Autora: Cathy O’Neil. Tradutor: Rafael Abraham. Editora: Rua do Sabão. Páginas: 321. Preço: R$ 60.

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