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Por — São Paulo

“Ide a São João del Rey/ De trem/ Como os paulistas foram/ A pé de ferro”, convida um poema de “Pau-Brasil”, livro publicado em 1925 por Oswald de Andrade. Na seção “Roteiro das Minas”, o poeta paulista rememora a excursão dos modernistas às cidades históricas mineiras na Semana Santa de 1924, apelidada de “redescoberta do Brasil” pelo escritor franco-suíço Blaise Cendrars, que acompanhou a turma.

A viagem mudou o rumo do movimento. No barroco mineiro, os modernistas encontraram a versão nacional do que as vanguardas europeias chamavam de “arte primitiva” e abraçaram de vez a cultura popular. E não foi só isso. Estudiosos afirmam que a excursão deu uma perspectiva mais “cosmopolita” ao modernismo e influenciou a criação de políticas de proteção ao patrimônio histórico.

Na quarta-feira da Semana Santa, 16 de abril, desembarcaram em São João Del Rei: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, Blaise Cendrars, Dona Olívia Guedes Penteado, Gofredo da Silva Teles, René Thiollier. De lá, seguiram para Tiradentes, Mariana, Ouro Preto, Sabará e Belo Horizonte (onde encontram os modernistas mineiros) e Lagoa Santa. Terminam a viagem em Congonhas do Campo, arrebatados pela “bíblia de pedra-sabão” (verso de Oswald) esculpida por Aleijadinho.

‘Que maravilha!’

Cendrars viera ao Brasil a convite do mecenas Paulo Prado, e os modernistas foram incumbidos de ciceroneá-lo. Levaram-no para pular carnaval no Rio (a festa inspirou o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de Oswald) e depois viajaram a Minas para acompanhar os festejos na Páscoa. Organizadora do livro “Modernismos (1922-2022)” (Companhia das Letras), Gênese Andrade explica que foi Cendrars quem chamou a atenção dos paulistas para as riquezas mineiras:

— Cendrars ficou encantado com o barroco. O tempo todo ele repetia “que maravilha!”. Mário até se irritava. René Thiollier conta que Cendrars se emocionou tanto com os ritos da Semana Santa que chegou a chorar.

Um século depois da caravana modernista, Ouro Preto voltará a se encher de intelectuais. De amanhã até quarta, nomes como Lilia Moritz Schwartz, Heloisa Starling e Ricardo Aleixo participam dos seminários organizados pelo MinasMundo, rede de mais de 70 pesquisadores de instituições brasileiras e estrangeiras que, desde 2020, pensam o legado cosmopolita do estado para o modernismo. Também estão na agenda uma exposição de primeiras edições de livros dos turistas de 24 (como “Clã do jabuti”, de Mário) e o lançamento do “Glossário MinasMundo” (Relicário).

Caravana modernista em frente a hotel em São João del Rei — Foto: Do "A aventura brasileira de Blaise Cendrars" (Edusp)
Caravana modernista em frente a hotel em São João del Rei — Foto: Do "A aventura brasileira de Blaise Cendrars" (Edusp)

O sociólogo André Botelho explica que o cosmopolitismo, que anima as pesquisas da rede, descreve a “relação menos autocentrada e mais aberta com o outro”, que os modernistas descobriram na viagem:

— O principal legado da viagem de 24 foi podermos pensar a cultura brasileira não mais como cópia dos originais europeus, mas em sua diferença e potência.

O crítico literário Silviano Santiago, que encerra os seminários na quarta ao lado da escritora Conceição Evaristo, afirma que a Semana de 22 apresentou-se como “vanguarda sem alicerce”, interessada apenas no presente e no progresso futuro. A excursão a Minas, em contrapartida, possibilitou ao modernismo ingressar numa espécie de “Renascença”, apropriando-se do passado nacional. Não à toa, “Pau-Brasil” tem seções intituladas “História do Brasil” e “Poemas da colonização”.

— A viagem a Minas mostrou aos modernistas que temos uma história riquíssima e contraditória. As cidades históricas foram berço do Iluminismo no Brasil e ao mesmo tempo viveram a pior violência do colonialismo e da escravidão, da qual o movimento de 22 tentou fugir — diz ele, acrescentando que importa mais celebrar a viagem de 24 que a Semana de 22.

Oswald concordava. Em um texto incluído em “Ponta de lança”, reunião de ensaios do autor que a Companhia das Letras reedita em setembro, Santiago lembra que, nos anos 1940, as reflexões de Mário sobre a Semana trazem “as cores negras do mais profundo pessimismo”. Já Oswald, escreve o crítico, “sai sorridente e feliz de suas reminiscências históricas”, comemorando “a guinada nacionalista” do “vanguardismo futurista tropical” em meio a “espetaculosa tranquilidade de Minas” descrita em um poema de “Pau-Brasil”.

Conservação do patrimônio histórico

No poema “Ouro Preto”, incluído em “Pau-Brasil”, Oswald de Andrade recorda a visita dos modernistas à Igreja de São Francisco de Assis: “O sacristão que é vizinho da Maria Canna-Verde/ Abre e mostra o abandono/ Os púlpitos do Aleijadinho/ O teto do Ataíde”. Os tesouros do barroco mineiro estavam largados às traças. Era tão dramática a situação que Tarsila do Amaral, possuída por um “fogo sagrado”, prometeu ir a Paris aperfeiçoar-se nas técnicas de restauração e depois voltar a Minas para trabalhar de graça na conservação do patrimônio histórico. “Que remuneração melhor para mim do que restituir à pequena e maravilhosa Rosário de S. José del Rei o esplendor passado do seu teto?”, disse.

Tarsila não cumpriu a promessa, mas a viagem de “redescoberta do Brasil” acelerou a implantação de políticas de proteção ao patrimônio histórico no país. De volta a São Paulo, Dona Olívia Guedes Penteado convocou uma reunião em sua casa para discutir a criação da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil. Mário de Andrade não pôde ir (tinha que dar aula no Conservatório de São Paulo) e Blaise Cendrars foi incumbido de redigir os estatutos, que previam a criação de um “Museu Nacional Brasileiro”, a valorização da “arte popular em todas as suas formas” e “particularmente” dos “vestígios da arte indígena” e de “manifestações dos negros”.

O projeto não saiu do papel porque as revoltas tenentistas em São Paulo dispersaram o grupo (que se refugiou em suas fazendas). Mas as sementes haviam sido plantadas ainda em Minas, quando os paulistas contaram aos modernistas locais (Carlos Drummond, Pedro Nava, Emílio Moura) sobre o abandono das cidades barrocas. Envergonhados, eles pressionaram a elite política a tomar providências. No ano seguinte, o governo estadual produziu o filme “Minas antiga”, que fazia um inventário dos tesouros barrocos e será exibido durante os seminários MinasMundo, em Ouro Preto, por Carlos Augusto Calil, professor de cinema na USP e ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo.

O principal passo para a consolidação de políticas públicas de proteção ao patrimônio histórico se deu em 1937 com a criação do SPHAN (atual IPHAN), o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cujo anteprojeto foi elaborado por Mário a pedido do ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema (que teve Drummond como chefe de gabinete).

— Mário volta da viagem a Minas convencido da necessidade de proteção ao patrimônio histórico. Essa consciência contagia a geração de Drummond, que vai ocupar cargos no governo Vargas e agir em prol da preservação — afirma Calil. — Foi Mário, inclusive, quem inventou a figura do “tombamento”. Em Portugal e em outros idiomas se diz “classificação”. De onde ele tirou esse nome? Da Torre do Tombo, onde estão os arquivos nacionais portugueses. A ideia de tombamento vem de registro, de arquivamento, e é a mais antiga política pública brasileira ainda em pé. Isso atesta a lucidez e o prestígio do Mário político.

Nada foi como antes

O sociólogo André Botelho, do MinasMundo, afirma que a descoberta do barroco e da cultura popular na Semana Santa de 1924 “modificou as obras individuais dos modernistas e o modernismo como um todo, afetando toda a cultura brasileira”. Depois da viagem a Minas, nada foi como antes. A pesquisadora Gênese Andrade explica que a publicação do “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, em março daquele ano, e a excursão às cidades histórias inauguraram um novo momento no modernismo.

Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, desenho de Tarsila feito na viagem a Minas (1924) — Foto: Reprodução
Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, desenho de Tarsila feito na viagem a Minas (1924) — Foto: Reprodução

Veja a seguir como o passeio pelas velhas cidades do ouro influenciou aqueles turistas aprendizes.

Mário de Andrade

O autor de “Pauliceia desvairada” era o único que já tinha ido a Minas. Em 1919, visitara o poeta Alphonsus de Guimaraens em Mariana. A viagem de 1924, porém, teve mais impacto. Alertou-o para a urgência da preservação do patrimônio histórico e inspirou textos como “Noturno de Belo Horizonte”, que descreve o “espanto” que “varre Minas Gerais por toda parte”, e o ensaio “O Aleijadinho e a posição nacional”, publicado no volume “O Aleijadinho e Álvares de Azevedo”.

Oswald de Andrade

Embora discordasse de Mário e negasse que Aleijadinho fosse gênio (pois o artista não tivera estudo), Oswald escreveu que os profetas esculpidos pelo artista em Congonhas do Campo “monumentalizam a paisagem” em “Ocaso”, poema de “Pau-Brasil”. Na seção “Roteiro das Minas”, que compõe o livro, o paulista dedica versos às cidades visitadas, como Ouro Preto, Sabará e Lagoa Santa. “A Verônica estende os braços/ E canta/ O pálio parou/ Todos escutam/ A voz na noite/ Cheia de ladeiras acessas”, diz um poema que recorda a procissão da Sexta-Feira da Paixão em Tiradentes. Duas décadas depois, Oswald volta a Minas e, em uma conferência em Belo Horizonte, celebra 1924 como ponto alto do modernismo.

Tarsila do Amaral

A autora de “Abaporu” desenhou durante toda a viagem. Lembranças de Minas surgem em telas pintadas por Tarsila na década de 20, como “Lagoa Santa”, “Religião brasileira” e “A feira”. Em um depoimento, a pintora afirmou que, em 1924, redescobriu a paleta de cores de sua infância, passada em fazendas de São Paulo. “Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras”, recordou. “Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante”.

Modernismo mineiro

“Uma das coisas mais importantes para a vida do nosso grupo foi a visita, logo depois da Semana Santa de 1924, da caravana paulista que andava descobrindo o Brasil”, contou Pedro Nava, que integrava o grupo de jovens mineiros que recepcionaram os modernistas no Grande Hotel, em Belo Horizonte. Depois daquele encontro marcado, a contribuição mineira ao movimento cresce. No ano seguinte, eles lançam uma publicação modernista: A Revista. Em 1924, também teve início a correspondência entre Mário de Andrade e o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade, que continuou até a morte do paulista, em 1945.

Blaise Cendrars

Arrebatado pela “bíblia de pedra-sabão” (palavras de Oswald) de Congonhas do Campo, o franco-suíço Blaise Cendrars planejava um relato intitulado “Aleijadinho ou a história de um santuário brasileiro”. Mas confessou não ter seguido com o projeto por ser “preguiçoso”. A viagem a Minas também inspirou o texto “O elogio da vida perigosa”, baseado no que ouvira de um presidiário em Tiradentes. O homem disse que fora condenado por matar um rival, arrancar-lhe o coração e devorá-lo. Em 1925, em Paris, Cendrars implorou: “Brasileiros, protejam seus tesouros!”

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