Em “A segunda mãe”, a autora Karin Hueck faz combinações curiosas entre as palavras. São composições incomuns, que levam a um estranhamento característico de boa literatura — como uma “grama implausível” de tão verde. O efeito também surge quando Hueck aproxima termos e ideias distantes, como chuva e divórcio. “Assim que a primeira gota de chuva caiu sobre o braço esquerdo de Madalena, teve a certeza de que se divorciariam”, diz a primeira frase do livro. Este estranhamento da linguagem, como veremos, está a serviço do enredo.
Hueck conta a história de um casal de mães, Madalena e Andrea, que criam a menina Rosa e logo terão outro bebê. Mas o livro, ainda bem, não é mais um na saturada safra que explora dificuldades da maternidade. A autora vai muito além. Na primeira parte de seu romance de estreia, a paulistana constrói quase um gótico brasileiro; na segunda, uma distopia com ritmo de suspense que debate a questão de gênero — sem mais detalhes, por enquanto.
Presságios e prevenções
A atmosfera gótica está presente na residência do casal — ampla, elegante e toda decorada de branco, mas que para Madalena é como uma mansão sinistra, aprisionando-a na vida doméstica — e nas mudanças da natureza que refletem transições internas da personagem. “O tempo virando presságio”, diz o narrador, quando a festinha de aniversário de Rosa, que Madalena organizou com minúcia em um parque, é destruída por uma forte chuva e pelo atraso de Andrea.
O casal de mães vive em um bairro nobre e planejado, distante da área central de uma grande cidade. A dinâmica do relacionamento é desequilibrada. Andrea é uma alta funcionária do governo, portanto é economicamente ativa e pode “sair pela porta da frente e ter o dia para si”. Enquanto isso, Madalena é uma esposa-troféu, ocupada com a filha e o lar.
É a deixa para boas descrições de tipos sociais, como esta de ricas donas de casa: “Se pudessem se ver de longe, reconheceriam a visão embaraçosa que formavam, em seus vestidos de linho iguais e unhas do pé pintadas de preto que saltavam para fora das sandálias de couro.” Há ainda ações comuns que se tornam muito visuais na mão de Hueck, como um “sorriso de boca fechada” e uma despedida com “beijos no ar para as colegas”.
Eis que chegamos ao spoiler — se quiser evitar, pule este parágrafo. Ainda aqui? O.k. A distopia da obra desperta quando Rosa corta os cabelos e é comparada a um menino. Os fios curtos não são o problema em si, mas a comparação. Nesta sociedade, em busca de diminuir guerras, estupros, pedofilia e todo tipo de violência, uma revolução confinou homens em confortáveis alojamentos, preservados para fins reprodutivos. A genética é usada para eliminar os cromossomos Y, gerando apenas bebês meninas. “O problema era estatístico. Nem todos os homens eram monstruosos — mas todos os monstruosos eram homens”, escreve Hueck.
Diálogo com contemporâneas
Também autora do livro de não ficção “O lado sombrio dos contos de fadas”, Hueck é hábil em usar símbolos que remetem a significados intrincados na trama. É o caso dos caramujos que surgem no bairro de Madalena. Quando ela sai de casa, disposta a protestar contra o confinamento masculino, pisa sem querer em um dos animais, quebrando sua casca. Poderia ser a casca da própria personagem — que, depois de quebrada, revela seu verdadeiro eu.
Se o clima do livro às vezes lembra Clarice Lispector, a trama dialoga com o romance “Mundos de uma noite só” (2020), de Renata Belmonte, no qual também uma menina é criada por duas mulheres. Curiosamente, a modificação genética para fins de eliminação também surge em outro romance brasileiro recente, “Uma chance de continuarmos assim” (2023), de Taiasmin Ohnmacht. Ali, no entanto, as alterações são para embranquecer a população.
Um pouco gótico, um pouco distópico e com um tanto de suspense, “A segunda mãe” discute gênero sob uma ótica única e literária. Com um final surpreendente, explora o potencial máximo da ficção ao imaginar o inimaginável — e, assim, conduzir, enganar e encantar o leitor.
Paula Sperb é jornalista e crítica literária, com pós-doutorado em Letras na UFRGS
“A segunda mãe”
Autora: Karin Hueck. Editora: Todavia. Páginas:176. Preço: R$ 69,90. Cotação: ótimo