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Nova biografia de Carolina de Jesus tenta afastá-la do estereótipo de ‘escritora de favela’

Livro sobre autora de 'Quarto de despejo' esmiúça sua vida antes do sucesso
A escritora Carolina Maria de Jesus Foto: Arquivo O Globo
A escritora Carolina Maria de Jesus Foto: Arquivo O Globo

RIO — Para além das etiquetas que lhe penduraram, “favelada que escreveu um livro” ou “leitora catadora de lixo”, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) era uma intelectual, escritora e mulher de personalidade complexa e instigante. Seu livro “Quarto de despejo”, escrito na favela do Canindé em São Paulo em 1960, projetou-a para o mundo e os altos círculos da literatura.

No entanto, antes do boom, ela já era uma autora experiente. E, após o sucesso do livro, o mundo da artes acabou a consumindo, fazendo com que voltasse à pobreza e ao ostracismo no fim da vida. São aspectos de sua vida como esses que o jornalista e crítico literário Tom Farias esmiúça em “Carolina — uma biografia” (editora Malê), novo livro sobre a vida da autora. O lançamento em São Paulo acontece nesta quinta-feira, às 18h, na Casa das Rosas; já no Rio será dia 20, na Travessa de Ipanema, às 19h.

— A intenção era quebrar estereótipos e paradigmas que até hoje acompanham Carolina e sua obra — diz Farias, que durante quatro anos vasculhou jornais antigos e entrevistou familiares e personalidades próximas à autora. — A visão que se tem até hoje da Carolina não é de uma escritora, mas de uma pobre negra e moradora da favela que escrevia livros. Mas Carolina morou apenas alguns anos da vida dela na favela e, a todo momento, demonstra estar de costas para esse espaço, que é alvo de suas mais duras críticas. Tanto que ao deixá-lo foi xingada e apedrejada pelos moradores.

“A visão que se tem até hoje da Carolina não é de uma escritora, mas de uma pobre negra e moradora da favela que escrevia livros. Mas Carolina morou apenas alguns anos da vida dela na favela e, a todo momento, demonstra estar de costas para esse espaço”

Tom Farias
Escritor

Outro aspecto pouco conhecido da escritora, que faria 104 anos nesta quarta-feira, é sua vida e produção antes de se mudar para o Canindé em 1948.

Muito antes de estourar para o público em uma histórica reportagem de “O Cruzeiro” no fim dos anos 1950, ela já frequentava redações de jornais em busca de divulgação para seus poemas. Apesar de ter cursado apenas dois anos letivos, aquilo foi o suficiente para não largar mais o hábito da escrita e da leitura.

NOVAS DESCOBERTAS NA BIOGRAFIA DA ESCRITORA

Tom Farias lembra o episódio em que, numa de suas incursões aos jornais em 1940, ela foi recebida pelo jornalista da “Folha da Manhã” Willy Aureli, e mostrou seus manuscritos. No entanto, a matéria com foto destacava apenas o caráter “exótico” daquela mulher negra e pobre que escrevia poesias.

Ainda assim, Carolina conseguiu que alguns de seus poemas fossem publicados ao longo das décadas de 1940 e 1950, incluindo os jornais “A Noite” e “O Dia”, do Rio de Janeiro, onde morou por dois anos. A temporada na então capital federal, aliás, é uma descoberta que nem mesmo a família da autora conhecia, segundo Farias.

— Carolina escreveu dramas, romances, contos, provérbios e poesias, e letras de músicas também. Dizia que alguns malandros tinha roubado algumas dessas poesias e musicado sem creditar a autora.

Quando se mudou para a comunidade do Canindé, ela estava sem emprego e grávida. Lá, começou a registrar o seu cotidiano e o de seus vizinhos. Até que, em 1958, veio o reconhecimento. Após assinar com a editora Francisco Alves, Carolina Maria de Jesus virou uma espécie de celebridade literária, traduzida em 14 idiomas e vendida em 40 países.

Farias descobriu, na imprensa da época, que, só na noite de lançamento de “Quarto do despejo”, a escritora vendeu 600 exemplares, e consumiu-se 1.400 batidas de limão e coco. O sucesso instantâneo do livro, que vendeu 10 mil cópias na primeira semana (e venderia, segundo dados do biógrafo, outras 300 mil nos anos seguintes), teria enciumado autores consagrados da época.

POEMA DEDICADO POR PABLO NERUDA

“No fim da vida muitos a viam como louca. Mesmo sem necessitar, ela chegou a voltar a catar papel nas ruas só para chamar a atenção da mídia. ”

Tom Farias
Escritor

Carolina frequentou a casa de famílias importantes, como os Suplicy, e foi recebida por chefes de Estado. O presidente do Uruguai mandou parar tudo durante sua visita, e Pablo Neruda dedicou-lhe um poema (hoje perdido). Mas o êxito não durou. A autora não conseguiu repetir o feito com suas obras posteriores como “Casa de alvenaria” e “Pedaços de fome”. Caiu no ostracismo e perdeu quase tudo o que havia ganhado com o reconhecimento.

Carolina não chegou a passar fome, pois havia comprado um sítio grande onde plantava e criava animais. Mas, segundo o autor, sentia falta dos bens materiais que o dinheiro lhe havia proporcionado nos anos áureos. Farias registra algumas “lendas”, como as idas de Carolina ao Fasano de São Paulo para tomar chá. Ou ainda os vários vestidos de Denner, o estilista da primeira-dama Maria Teresa Goulart, que comprou a 18 mil cruzeiros. Para se ter uma comparação, em sua época de catadora vendia o quilo de papel por um cruzeiro.

— No fim da vida muitos a viam como louca — conta Farias. — Mesmo sem necessitar, ela chegou a voltar a catar papel nas ruas só para chamar a atenção da mídia.

A autora vem passando por um processo de resgate por parte dos pesquisadores, que buscam devolver seu lugar na literatura brasileira. No ano passado, seu “Quarto de despejo” foi um dos dez livros mais vendidos de 2017 no site Estante Virtual. Além disso, no carnaval deste ano ela foi homenageada na Sapucaí, no desfile do Salgueiro cujo enredo “Senhoras do ventre do mundo” exaltava a força das mulheres negras.

— Carolina nunca foi tratada como a uma mulher inteligente e à frente do seu tempo — afirma Farias. — O aspecto da pobreza, da favela, da falta de estudos chamou mais a atenção como produto midiático, de puro marketing. Causou também ciumeira na “classe” literária, muito elitizada: o boicote a Carolina foi feio, sem sentido, colonial e assustador.

“Carolina — uma biografia”

Autor: Tom Farias. Editora: Malê.

Páginas: 402. Preço: R$ 72.