Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Nova biografia expõe paradoxos de Sigmund Freud

Psicanalista surge como um produto de seu tempo em livro de Elisabeth Roudinesco
Para Roudinesco, Freud foi responsável por uma “revolução do íntimo” Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Para Roudinesco, Freud foi responsável por uma “revolução do íntimo” Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

RIO - Ao se debruçar sobre a vida de Jacques Lacan, Elisabeth Roudinesco teve a oportunidade de constituir os arquivos do psiquiatra francês e fazer sua biografia quase que em primeira mão, publicada em 1993. Duas décadas mais tarde, ela se aventurou em um desafio oposto: escrever a biografia de um dos personagens mais documentados da História. Em “Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo” (Zahar), lançado agora no Brasil, a psicanalista e historiadora parisiense busca novas abordagens sobre o pai da psicanálise, que desde 1924 já foi tema de algumas dezenas de biografias.

De passagem pelo Rio, Elisabeth falou com O GLOBO sobre a construção de seu Freud, responsável por uma revolução que define como “completamente racional e obcecada pela conquista dos rios subterrâneos”. Fugindo ao máximo da hagiografia e bebendo na fonte de diferentes escolas de pesquisa (desde os biógrafos oficiais aos detratores antifreudianos), ela detalha as contradições de um pensador paradoxal, que aparece à frente de sua época ao mesmo tempo em que se firma como um perfeito produto dela. Um cientista literato que se move na fronteira entre dois mundos, o do iluminismo sombrio e o do romantismo negro.

Quais são os desafios de biografar uma figura já amplamente trabalhada?

Freud é como a Revolução Francesa, cada época faz a sua revisão. Há o período da história oficial, feita por discípulos como Ernest Jones, e o do antifreudismo. Busquei uma síntese dos dois. Mas também precisava de um ângulo diferente para me posicionar em relação a biógrafos anteriores. Peter Gay, por exemplo, era um historiador vitoriano, e assim fez de Freud um sábio inglês, herdeiro de Darwin. Eu queria pôr Freud nesse outro contexto, o de Viena, o que ninguém havia feito antes.

E que Freud é esse?

Seu universo é a Viena judia da Belle Époque e a Europa antes da guerra de 1914. Mas também insisti em mostrar a importância de pertencer a uma família de judeus da Galícia, comerciantes cujos filhos se tornam intelectuais. Freud é herdeiro de uma época de casamentos arranjados, mas faz parte de uma geração que começa a casar por amor. Ele está nessa época dobradiça, de transição. Isso vai influenciar a sua teoria da sexualidade, de que escolhemos nosso destino amoroso.

Qual é o lugar da família na vida de Freud?

Ao se apaixonar, Freud via em dobro. Aconteceu em sua juventude quando se apaixonou por Gisela Fluss e também pela mãe dela. No seu casamento não foi diferente: amava carnalmente sua esposa, mas adorava a cunhada e rivalizava com a sogra. Ele sempre reconstruía uma história de família. Aí temos a gênese do que iria fazer depois com o inconsciente. Desde cedo, observava fascinado o que se passa nas famílias.

Por que o ambiente em que Freud viveu foi essencial para o surgimento da psicanálise?

A psicanálise foi inventada em uma época da burguesia triunfante, e para os burgueses. Porque eram pessoas ociosas, que tinham tempo de se dedicar a si mesmos. Os pacientes de Freud parecem com personagens de Proust, Thomas Mann e Stefan Zweig. No início, a análise não era para os loucos e doentes, mas para os neuróticos. Os discípulos de Freud é que irão, a partir de Jung, estendê-la a todos os tipos de problemas mentais.

O seu Freud é liberal em muitos aspectos e conservador em outros...

Já fizeram dele até um subversivo de esquerda. Eu, por outro lado, vejo-o como um conservador esclarecido. Freud fez uma revolução do íntimo, não do social. Sua terra prometida é a da exploração do si. Era favorável à emancipação das mulheres, ao divórcio e ao aborto, no limite do que era possível em sua época. Mostrei os paradoxos dele, como o de ser um grande teórico da sexualidade e não ter uma sexualidade muito carregada.

No livro, a senhora confirma que a vida sexual de Freud durou apenas nove anos. Sua mulher já havia tido seis filhos e ele não queria que ela sofresse com mais uma gravidez. Por que não usar métodos contraceptivos?

Porque os preservativos da época eram horríveis. E ele era contra o coito interrompido. Mas creio que há outras razões. Freud preferia se ocupar de sua obra, e era adepto da frustração, do autocontrole. Para ele, a felicidade dos homens é poder controlar suas pulsões, especialmente quando se tornam especialistas da sexualidade. Porém, sabemos pouco sobre a vida sexual dele antes do casamento: apenas que teve alguns casos e que não frequentava bordeis

A senhora define a psicanálise como uma tentativa de transformar “o romantismo numa ciência”. Como a herança do romantismo influenciou Freud?

O essencial é a dialética entre sombra e luz. Não por acaso encontramos em Freud figuras como Fausto e Mefistófeles, ou a luta entre o Anjo e Jacó. Freud é um homem das luzes, mas é obcecado pelo que há de mais sombrio no indivíduo. Pertence a uma época do racional e convive com uma tentação permanente do irracional e do extravagante. Ele se interessou por coisas estranhas, como telepatia, e acreditava em teorias do complô. E viveu cercado por discípulos transgressores, como Reich, Jung e outros rebeldes.

Depois do seu livro, o que ainda resta a pesquisar?

Do ponto de vista dos fatos, não há mais novidades, só maneiras diferentes de abordar as mesmas coisas. Mas restam tesouros nos arquivos, principalmente sobre o jovem Freud, incluindo a sua fase como neurologista, que eu não tratei muito. Acho que também falta um livro que estude todos os casos [pacientes] de Freud. Busquei alguns conhecidos e acrescentei outros que não haviam sido explorados, mas não todos.

Capa de "Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo", de Elisabeth Roudinesco Foto: Reprodução / Agência O GLOBO
Capa de "Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo", de Elisabeth Roudinesco Foto: Reprodução / Agência O GLOBO

SERVIÇO :

“Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo’’

Elisabeth Roudinesco

biografia

Zahar, 528 páginas.

R$ 79,90