RIO — Doenças, tempestades e meses sem comida fresca. Fernão de Magalhães sabia destes percalços, mas não avisou sua tripulação. Naquele 10 de agosto de 1519, há exatos 500 anos, a preocupação do navegador português era encontrar alternativa à custosa rota às Índias pela África. Sem saber, dava início à primeira circumnavegação do planeta, antecipando a globalização e confirmando, para desânimo dos terraplanistas: a Terra é redonda.
A armada de Magalhães deixou Sevilha em 10 de agosto, descendo por rio até o porto marítimo de Sanlúcar de Barrameda. Cinco semanas depois, em 20 de setembro, saíram para o Atlântico. Dos 240 homens que partiram, apenas 18 retornaram, três anos depois, no único barco que resistiu à travessia rumo às especiarias das Ilhas Molucas (Indonésia). É do ponto de vista de um deles que o filósofo italiano Gianluca Barbera conduz o romance histórico “Fernão de Magalhães: A história da primeira circum-navegação da Terra” (Vestígio), recém-lançado no Brasil. Juan Sebastián Elcano era o mestre de uma das cinco naus e, com a morte de Magalhães durante a viagem, assumiria o comando no trecho final.
FERNÃO DE MAGALHÃES: O navegador que deu a volta ao mundo 500 anos atrás e dividiu Portugal e Espanha
A volta ao mundo “sempre ao Oeste” viu também o primeiro europeu navegar a passagem que mais tarde levaria seu nome, o Estreito de Magalhães, ao sul da América do Sul; e o batismo dos moradores gigantes da região como patagões — daí o nome Patagônia.
— É a empreitada mais visionária jamais concebida, comparável apenas ao pouso do Homem na Lua — defende Barbera, em entrevista por e-mail. — Permitiu-nos redesenhar os mapas do mundo, completamente errados na época.
O livro de Barbera parece se inspirar na discussão que, até hoje, questiona a nacionalidade da expedição, custeada pela Espanha, mas liderada por um português. Embora Magalhães fosse lusitano, o projeto não contou com a bênção do rei de Portugal, Dom Manuel I, que se recusou a patrociná-lo. Só com o apoio das caravelas espanholas conseguiu montar a expedição. Para pôr fim ao embate, no início de 2019, os dois países acordaram em apresentar uma candidatura binacional para inscrever a Rota de Magalhães como Patrimônio da Unesco.
“Fernão de Magalhães: A história da primeira circum-navegação da Terra”, que dá voz a Elcano, recria o que teria sido a rotina da tripulação. Parte de uma narrativa fluida, em primeira pessoa. E costura ficção e dados do único registro completo da viagem, assinado por Antonio Pigafetta, além dos relatos do piloto Francisco Albo e da epístola que Massimiliano Transilvano escreveu com testemunhos de viajantes.
Mas Barbera também usa a História como pano de fundo para falar sobre culpa e traição. Elcano, diante do rei da Espanha, teria se apropriado dos méritos devidos a Magalhães, o que rende um drama particular ao feito heroico.
— A culpa atormentou Elcano a ponto de incitá-lo a escrever uma confissão para restaurar a verdade — explica o autor.
No entanto, o relato mais famoso sobre a viagem é mesmo o assinado por Antonio Pigafetta, um jovem italiano de 28 anos que registrava tudo enquanto a História acontecia diante dos olhos. Pigafetta entrou na expedição como excedente, ganhou o confiança do comandante e chegou a intérprete do grupo. Embora os diários originais tenham se perdido, seu “A 1ª viagem ao redor do mundo — o diário da expedição de Fernão de Magalhães” (L&PM) é um dos documentos mais precisos da viagem, com impressões que vão da biologia à etnografia.
Reescrito pelo próprio Pigafetta, provavelmente após 1524 (quando ele já havia sido nomeado cavaleiro), seu relato tem servido de base para tudo o que já foi publicado sobre a empreitada, e chegou ao Brasil por caminhos tão sinuosos quanto aquela viagem. Gabriel García Márquez costumava dizer que o livro de Pigafetta era um dos mais geniais que havia lido e chegou a citá-lo ao receber o Nobel, em 1982.
MOTINS NA TRIPULAÇÃO
Não surpreende que tenha encantado um expoente do realismo mágico. O texto é repleto de descrições dos costumes de ilhas das regiões de Java e Bali, como as mulheres que se queimavam vivas na mesma fogueira em que ardia o marido recém-falecido e jovens apaixonados que adornavam seus pênis com guizos para atrair suas amadas.
Barbera, porém, alerta que o que lemos não é o relatório original de Pigafetta, mas um livro de viagens baseado apenas nas suas lembranças.
— O original desapareceu, provavelmente porque nele se celebrava a figura de um Magalhães português, e não de um espanhol — diz.
Tanto o livro de Pigafetta quanto o de Barbera mostram uma viagem cheia de percalços internos. À base de esquartejamentos, Magalhães controlou os motins na tripulação. Quatro caravelas foram perdidas no caminho. Na Patagônia ou nas atuais Filipinas, que começaram a ser colonizadas nessa viagem, a esquadra de Magalhães era recebida por locais dispostos a oferecer o que tinham em troca de bugigangas europeias. Mas, na Ilha de Mactán, o chefe Cilapulalu não aceita a autoridade do rei da Espanha, e Magalhães morre numa emboscada, um ano e meio antes do fim da viagem.
Quando a expedição terminou, em setembro de 1522, os sobreviventes estavam exaustos e esfomeados. Mas trouxeram ouro suficiente para pagar pela empreitada — e um conhecimento que até hoje não tem preço.
SERVIÇO:
“Fernão de Magalhães: A história da primeira circum-navegação da Terra”. Autor: Gianluca Barbera. Tradução: Reginaldo Francisco. Editora: Vestígio. Páginas: 256. Preço: R$ 49,80.
“A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de Fernão de Magalhães”. Autor: Antonio Pigafetta. Tradução: Jurandir Soares dos Santos. Editora: L&PM. Páginas: 216. Preço: R$18,90.