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'O que faremos com nossa raiva e demanda por justiça?', questiona americana Roxane Gay em livro sobre violência sexual

Professora da Universidade Yale e colunista do New York Times, ela organiza 'Precisamos falar sobre abuso', uma coletânea de 30 relatos sobre violência sexual, escritos em primeira pessoa pelas sobreviventes
A intelectual americana Roxane Gay Foto: Divulgação/Reginald Cunningham
A intelectual americana Roxane Gay Foto: Divulgação/Reginald Cunningham

"Quando eu tinha 12 anos, fui vítima de um estupro coletivo no bosque atrás da minha vizinhança, cometido por um grupo de meninos com intenções perigosas de homens cruéis. Foi uma experiência terrível, do tipo que muda a vida de uma pessoa. Antes dela, eu era ingênua, protegida. E depois, não mais. Eu estava alquebrada. Transformada. Nunca saberei quem eu teria sido se não tivesse me tornado a garota do bosque."

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A garota do bosque, uma alcunha singela para quem sobreviveu a uma experiência tão terrível quanto a violência sexual, é Roxane Gay, ensaísta, escritora e um dos nomes mais importantes do feminismo americano na atualidade. Foi levada a uma cabana por um adolescente por quem ela estava apaixonada, e que, acompanhado de outros colegas, segurou-a pelos punhos e a violentou. Ninguém ouviu seus gritos.

Hoje, aos 46 anos, Gay é professora da Universidade Yale e colunista do New York Times. Além de seu trabalho acadêmico e da escrita ficcional, tem se dedicado a escrever sobre gênero e sexualidade, raça, política e entretenimento, quase sempre de forma muito pessoal, mesclando memórias e crítica cultural, como fez nos best-sellers "Má feminista", que terá uma nova tradução lançada no Brasil em setembro e  " Fome " (ambos da Globo Livros). Seu lançamento mais recente, "Precisamos falar sobre abuso", também publicado no Brasil pela Globo Livros, reúne 30 relatos, todos escritos em primeira pessoa por quem, como ela, convive com as reminiscências de uma violência sexual.

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O conjunto de textos — em sua maioria de autoria feminina, apenas dois são escritos por homens — mostra que a violência sexual é uma experiência compartilhada por elas, muito mais do que nossa sociedade gostaria de admitir. Aponta ainda que embora a sobrevivência seja um alívio, é também uma carga pesada e devastadora para quem precisa seguir adiante. "Ensinei a mim mesma a ser grata por ter sobrevivido, mesmo que a sobrevivência não parecesse muito", escreve Gay, na introdução do livro que é organizado e editado por ela.

“Levou muito tempo para que um debate sobre violência sexual acontecesse porque as mulheres são, quase sempre, as que passam por isso. E nós ainda somos tratadas como cidadãs de segunda classe”

Roxane Gay
escritora e professora da Universidade Yale

Em entrevista por e-mail, Gay afirma que essa gratidão, expressa em pensamentos como "poderia ter sido pior" ou "como eu não morri, segui adiante", é responsável, mesmo que parcialmente, por tantos anos de silêncio de quem passou por uma violência sexual.

— A maioria das sobreviventes de violência sexual minimiza as suas experiências porque o mundo tende a nos dizer que, se somos atacadas, fizemos alguma coisa errada e nos colocamos naquela posição. Ou nos dizem que o que vivemos não foi tão grave comparado ao que outras pessoas, a maioria delas mulheres, vive - afirma ela, para quem esse tipo de comparação é inútil. — Todos nós sofremos e merecemos ter o nosso sofrimento respeitado por si, não em relação ao sofrimento de outros. Não deveríamos ter que ser gratas porque "poderia ter sido pior".

Roxane Gay: depois de 'Má feminista', escritora aborda gordofobia em livro Foto: Jay Grabiec / Divulgação
Roxane Gay: depois de 'Má feminista', escritora aborda gordofobia em livro Foto: Jay Grabiec / Divulgação

Para ela, movimentos como o #metoo, que revelou casos de assédio e abuso sexual em Hollywood, culminando na condenação do produtor Harvey Weinstein a 23 anos de prisão, criaram um "debate sustentado" sobre violência sexual em todo o mundo.

— Levou muito tempo para que um debate sobre violência sexual acontecesse porque as mulheres são, quase sempre, as que passam por isso. E nós ainda somos tratadas como cidadãs de segunda classe. No decorrer da História, nossas preocupações raramente importaram, até que exigimos que elas importassem — reflete Gay, para quem o #metoo e outros movimentos contra a violência de gênero, como o argentino Ni una menos, nasceram porque as mulheres disseram "basta". — A discussão acontecia, mas ninguém ouvia, até que algumas de nós se sentiram seguras e fortes o suficiente para unir as nossas vozes.

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O livro de Gay é o mais recente de uma série de lançamentos editoriais sobre o tema no Brasil, que inclui a reportagem "Abuso", da jornalista Ana Paula Araújo; o romance "Vista chinesa", de Tatiana Salem Levy; o relato "Eu tenho um nome", em que a artista Chanel Miller fala sobre o estupro que sofreu no campus da Universidade Stanford; e "O consentimento", em que a cineasta francesa Vanessa Springora conta sobre os abusos que sofreu na relação com o escritor Gabriel Matzneff. Aos 83 anos, ele perdeu contratos com três editoras e será julgado, em setembro, por pedofilia.

Para Gay, essa agitação do mercado editorial mostra que há hoje um grande e ativo movimento cultural e político de mulheres. Mas ela insiste que é necessário pensar no que fazer além das denúncias.

— O que faremos com todos esses relatos, essa raiva, essa demanda por Justiça? Como faremos para que os nossos líderes eleitos se importem? Não tenho respostas para essas perguntas, ou suponho que tenho, a maioria das mulheres também, mas poucas pessoas no poder estão realmente interessadas em ouvir as nossas ideias — diz Gay, que se diz "enfurecida" com o tempo que gasta para se proteger da violência. — Eu poderia ter usado esse tempo para coisas muito mais interessantes. Imagine o que as mulheres poderiam realizar se pudessem acreditar que estão seguras.

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Nesse exercício imaginativo, ela acredita que relatos em primeira pessoa, como os de "Precisamos falar sobre abuso", podem trazer mais gente para o debate sobre violência de gênero e a segurança de meninas e mulheres:

— Eu nem sempre escrevo a partir desse ponto de vista, mas às vezes, para realmente atingir os leitores, é preciso a autoridade do relato pessoal, o discurso a partir desse lugar de vulnerabilidade. Assim, eles entendem que não estou simplesmente fazendo um exercício intelectual — diz Gay, que, em meio . à explosão do debate racial nos EUA, vê em Kamala Harris uma ponta de esperança. — É encorajador que ela seja a primeira mulher e a primeira negra e asiática a ser vice-presidente. Espero que possa usar seu poder com sabedoria para beneficar os mais vulneráveis entre nós.

livro1.jpg Livro: “Precisamos falar sobre abuso”. Organizadora: Roxane Gay. Editora: Globo Livros. Tradução: Fal Azevedo. Páginas: 296. Preço: R$ 49,90.