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O que Machado de Assis e 'O gambito da rainha' têm em comum?

Além de jogar xadrez, escritor foi árbitro de torneios, descobre pesquisador
Relação de Machado de Assis com xadrez era conhecida, mas pensava-se que ele havia abandonado a prática a partir dos anos 1880 Foto: Arte André Mello
Relação de Machado de Assis com xadrez era conhecida, mas pensava-se que ele havia abandonado a prática a partir dos anos 1880 Foto: Arte André Mello

RIO —  ‘Tudo pode ser, contanto que me salvem o xadrez”, escreveu Machado de Assis, em uma crônica de 1896. A relação entre o maior de todos os escritores do país e o tabuleiro é relativamente conhecida. Suas participações em torneios profissionais são bem documentadas, assim como as numerosas referências ao jogo em sua obra. Quando tudo ainda era mato, mais de um século antes de “O gambito da Rainha” bater recorde de audiência na Netflix (a minissérie estreou em outubro e virou a mais popular da história do serviço), botando o esporte na moda, o autor já ajudava a popularizá-lo com seus romances e crônicas.

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Os poucos estudos que exploram com mais profundidade essa característica de Machado dão conta de que ele parou de se envolver pessoalmente com o xadrez a partir da década de 1880. Investigando melhor a imprensa da época, porém, o crítico Victor da Rosa fez uma curiosa descoberta biográfica: Machado foi o primeiro árbitro de xadrez nos torneios de 1883 e 1884, período em que o esporte começava a se profissionalizar. Professor adjunto de literatura no curso de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto, o pesquisador publica a informação em seu artigo “O cálculo e o enigma: Machado de Assis e o jogo de xadrez”, que traz um olhar original sobre a influência das táticas do esporte no estilo do autor, além de analisar com atenção as suas partidas como jogador.

— Além da mera curiosidade, essa pequena descoberta pode significar que, diferentemente do que se acreditava, o xadrez não desaparece da vida de Machado de Assis a partir dos anos 1880, e provavelmente segue sendo praticado e estudado também na velhice — diz Rosa. — O xadrez não foi uma curiosidade momentânea, mas um jogo que ele praticou e estudou ao longo de toda a vida. Está presente em todos os momentos da sua obra, que também vai tratando o jogo de forma diferente ao longo dos anos.

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O xadrez entrou na vida de Machado no final da década 1860, quando estava na casa dos 30 anos e começava a se projetar como escritor. Mas ele teria começado realmente a levar a prática a sério entre 1877 e 1880, participando de reuniões em clubes de xadrez e não apenas resolvendo enigmas de tabuleiros como também criando os seus próprios. É ele, inclusive, o primeiro brasileiro a publicar um “enigma” de xadrez para ser resolvido por leitores em uma revista.

Estratégia e cautela

Apesar disso, o Machado enxadrista é raramente explorado a fundo por estudiosos. Há exceções, como o livro de ensaios “O homem lúdico”, de Wagner Martins Madeira, e alguns poucos artigos recentes, como o de Claudio Soares (“Machado de Assis, o enxadrista”) para a Revista Brasileira da ABL em 2008. Até aqui, a análise mais completa das incursões do Bruxo na atividade surgiram em “Machado de Assis e o jogo de xadrez”, artigo escrito em 1952 pelo pesquisador Matias Herculano Gomes (ele próprio enxadrista e presidente da Federação de Xadrez do Rio), e que serviu de base para a maioria dos estudos posteriores. Provavelmente por falta de documentação, Herculano diz que o Bruxo largou as competições abruptamente, logo após a sua participação no primeiro torneio de xadrez jogado no Brasil, no ano de 1880.

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Este último foi um acontecimento histórico para o esporte. Além de Machado, participaram outras duas figuras importantes: o pianista português Arthur Napoleão e um então adolescente João Caldas Viana Neto, que viria a se tornar um dos mais renomados enxadristas brasileiros do século XX. O escritor, que dois anos antes havia criado um personagem enxadrista no romance “Iaiá Garcia”, chegou a liderar o torneio. Mas, após três meses enfrentando adversários mais fortes, acabou em quarto lugar (entre seis competidores).

Em seu artigo, que será publicado em uma revista acadêmica, Rosa se debruça em alguns detalhes que passaram despercebidos até aqui. Analisou detalhadamente a vitória de Machado sobre o suíço Charles Pradez, transcrita e comentada em uma revista da época. Sua conclusão técnica é que o autor tinha “alguns princípios como enxadrista” e sabia propor uma jogada ainda pouco utilizada, a “abertura siciliana”. Graças a um plano de ataque paciente na ala do Rei adversário, o Bruxo imortalizou seu nome na história do xadrez nacional com a partida.

— Machado era bem diferente de um Marcel Duchamp, por exemplo, para citar outro artista enxadrista que analisei — conta o pesquisador. — Duchamp era fortíssimo, Machado não. Mas Machado tinha fundamentos, nota-se que estudava, tinha correção nos movimentos de abertura, tinha estratégia, sabia fazer um plano.

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Rosa observa que a partida vencida por Machado, transcrita na revista, é muito elogiada. Ou seja, ele dominava fundamentos do jogo que exigia algum conhecimento.

— E parece que tinha um estilo muito cauteloso, que acho que combina com a sua personalidade e até com a sua literatura.

O estilo de Machado, justamente, deve muito à sua experiência com o esporte, defende Rosa. Para ele, não é um acaso que o narrador dos dois últimos romances do autor (“Esau e Jacó” e “Memorial de Aires”) seja um enxadrista. Muito antes disso, no conto “Questão de vaidade” (1864), o xadrez também não é um mero tema, mas “uma chave de leitura importante”, lembra o pesquisador. O protagonista enxadrista, que corteja duas moças (sem que uma saiba da outra), é apresentado como um “calculista”, “um jogador” tanto nos tabuleiros quanto na vida.

— Quem joga xadrez e quem lê Machado sabe que a questão do cálculo é muito importante — observa Rosa. — Esta é a primeira lição que um jogador de xadrez aprende: olhar longe, calcular os movimentos do jogo o mais longe possível. Ou seja, ter “olhos de águia”, como outro personagem enxadrista de “Iaiá Garcia” diria depois.