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'O som do rugido da onça': Um romance assombroso e com ferocidade animal

Com prosa que remete a Guimarães Rosa e Mário de Andrade, livro de Micheliny Verunschk parte da história real de duas crianças indígenas levadas para a Alemanha no século XIX
A escritora Micheliny Verunschk Foto: Divulgação/Renato Parada
A escritora Micheliny Verunschk Foto: Divulgação/Renato Parada

“Eu em nada creio, sou um rio. Eu vou e volto, conheço o chão e o céu, compartilho a língua comum a todas as águas. Atravesso o tempo. Morro e renasço. Engulo e regurgito. Sei dos animais tristes que são os homens.” Sábias palavras de Isar, o rio-mulher, em “O som do rugido da onça”, quinto romance de Micheliny Verunschk. Nele, a escritora e historiadora ficcionaliza a história real de duas crianças indígenas. Raptadas no Brasil, foram levadas para a Alemanha no século XIX pelos cientistas alemães Von Martius e Von Spix. Na Europa, Iñe-e, do povo miranha, vira a triste Isabella, e um menino, de origem juri, transforma-se em Johann. Dois séculos depois, a visão de um quadro das crianças em uma exposição irrompe na vida de Josefa, cujo destino será impactado por esse encontro inesperado, iniciando uma busca por sua origem mestiça. São muitas as metamorfoses e renascimentos nesta narrativa — muda-se de país, de nome, de corpo.

Verunschk é autora da chamada trilogia infernal, composta por “Aqui, no coração do inferno” (2016), “O peso do coração de um homem” (2017) e “O amor, esse obstáculo” (2018). Por seu primeiro livro de ficção, “Nossa Teresa, vida e morte de uma santa suicida” (2014), recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura. “O som do rugido da onça” é formado por três blocos, entrelaçando de forma primorosa relatos de origem indígena (como o início, de forte impacto, descrevendo a criação do mundo na perspectiva dos miranha) a trechos que reproduzem a visão dos viajantes, a exemplo do diário do próprio Martius. A autora pernambucana dialoga com o gênero da literatura de viagem, mas traz para a trama do texto o olhar de diferentes sujeitos da História — lado a lado, o indígena, a natureza, a criança e o cientista se expressam, “desierarquizando” saberes.

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A prosa da escritora em muitos momentos apresenta uma cadência que remete à oralidade de Guimarães Rosa — difícil não lembrar de “Meu tio, o Iauaretê” (1969), antológico conto do autor mineiro. A possível linhagem produz uma conexão, mas não define essa escrita: em outros trechos é “Macunaíma” (1928), de Mário de Andrade, que ecoa em nossos ouvidos, pela escolha dos vocábulos e pela musicalidade do texto. Verunschk é também poeta, e sua escrita tem ritmo próprio: dá vontade de ler em voz alta, saboreando com vagar o andamento da linguagem.

Ainda que ecoe tantas vozes, o romance está ancorado no agora. Ele retoma um tempo de atrocidades e joga na cara do leitor a urgência de pensar o Brasil de hoje. Quem protegemos, quem deixamos morrer, a quem silenciamos. “Palavras podem ser armas dóceis”, alerta. Não aqui. No romance, as palavras reivindicam uma outra história, mirando o passado para ler o presente, sem condescendência ou vitimização. A narrativa fala de gente historicamente vista como bestial, selvagem e decaída: “Eram pássaros delicados, os brasis”. Como naturalistas, os homens de ciência que se fizeram viajantes sonhavam descrever a totalidade de elementos com que se deparavam. Entre o enamoramento diante da natureza e o desconforto frente aos habitantes do lugar, permitiam-se nomear, catalogar e dominar. Nesse contexto, um machado podia ser trocado por uma criança. É tudo mercadoria.

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E dessa forma embarcam para o Velho Mundo os infantes brasileiros. Para esses seres extraviados, o exílio dói e o corpo padece com o frio e as moléstias desconhecidas. Então a morte surge como desfecho incontornável. Mas não nos enganemos, o grande felino ronda e ruge. Iñe-e, subtraída da família e entregue como presente pelo pai aos viajantes alemães, é uma menina-onça. Se a guerra, a cobiça e a luxúria são empreendimentos predominantemente masculinos, é nessa hora que o feminino se insurge, ecoando o lugar da onça como totem tribal da mãe. A ferocidade animal nos lembra que há momentos sem espaço para perdão ou conciliação. Então a presa vira predador, porque “justiça de onça se faz é no dente”.

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A História é um triste desfile de barbárie e violência, e nesse quadro os indígenas são sujeitos engolidos e exibidos como butim dos exploradores. Na literatura de Verunschk, o berro da onça-menina se multiplica e, transformado em trovão, vira um basta: “Já viu como é que onça morde? (…) Quando chega no osso, aí é que ela aperta mais, e os dentões muito dos perfuradores vão nesse trabalho até alcançar os miolos, quebrando os ossos como se quebra um coco ou uma cabaça ao meio. É forte, viu?, a mordida da Dona”. Um viva à mordida e a esse assombroso romance.

Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na UFF e coorganizou a coletânea “Falando com estranhos — O estrangeiro e a literatura brasileira” (7Letras, 2016)

“O som do rugido da onça”

Autor: Micheliny Verunschk. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 168. Preço : R$ 54,90.

Cotação: ótimo.