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Obra de Sérgio Sant'Anna sempre esteve ligada à ideia de imperfeição como potência

Autor carioca, que morreu neste domingo, passou por romance e dramaturgia e se tornou um dos principais nomes do conto brasileiro
Sergio Sant'anna faleceu em decorrência de complicações causadas pela Covid-19 Foto: Leo Martins / O Globo
Sergio Sant'anna faleceu em decorrência de complicações causadas pela Covid-19 Foto: Leo Martins / O Globo

Na descrição dos mínimos movimentos da batida do pênalti, do olhar do jogador para o goleiro ao fatal momento do chute, a bola na trave subverte o conceito de fracasso. “Uma obra-prima até mesmo no ponto em que foi quase perfeita, pois existe algo de rígido, morto, na perfeição”, diz o narrador da novela “Páginas sem glória” (2012), publicada por Sérgio Sant’Anna no livro homônimo. Composta por cinco romances, uma peça de teatro, duas seletas de poemas e 12 coletâneas de contos — que ele preferia chamar de “narrativas” —, a obra do escritor morto ontem, aos 78 anos , sempre esteve ligada a essa ideia da imperfeição como potência.

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A busca pela palavra mais precisa convivia com a noção de que é a ranhura que humaniza a arte. Isso desde a estreia, em 1969, com “O sobrevivente”. O livro foi financiado pelo pai, após Sérgio ter passado uma temporada em Paris estudando Ciências Políticas. Nos anos seguintes, a barra pesada da ditadura levaria o autor aos Estados Unidos. Graças a uma bolsa da Fundação Ford, ficou por oito meses no país, matriculado no International Writing Program. A viagem transformaria seu modo de ver o mundo e, consequentemente, sua relação com a literatura.

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Sérgio costumava falar com entusiasmo dessa experiência. Em Iowa, conhece o Living Theatre e as peças do lendário diretor Bob Wilson, além de conviver com escritores e malucos-beleza de todo o planeta. “Meu trabalho é, até hoje, impregnado de uma teatralidade plástica”, afirmava, referindo-se àquela temporada. A exemplo da pintura e do futebol — ele era torcedor apaixonado do Fluminense —, o teatro iria se tornar tema constante em suas narrativas.

O retorno do Brasil seria marcado por uma sequência de novos livros: a coletânea de contos “Notas de Manfredo Rangel, repórter” (1973) e os romances “Confissões de Ralfo” (1975) e “Simulacros” (1977). Foi o momento em que a carreira de escritor começou a se consolidar, embora os prêmios só tenham chegado a partir da década seguinte.

Em 1981, Sérgio publica “Um romance de geração”, explorando a erosão das fronteiras entre dramaturgia e literatura. Mas é com “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, lançado um ano depois, que a ousadia formal já insinuada nos escritos anteriores alcança o ponto de maturação. Vencedora do Jabuti, a obra assinala um marco na história do conto brasileiro. “Um livro de textos, vários livros, vários fios”, sugere o narrador de “Uma página em branco”, conto que abre a seleta, a apontar para o caleidoscópio de vozes, e registros, e ruídos que a caracteriza.

A década de 1980 traria outros três trabalhos referenciais. Em “A tragédia brasileira” (1984), que Sérgio reputava como seu melhor livro, uma nova incursão pelo “romance-teatro”, com direito a divertidíssima discussão entre Buda e Jesus Cristo. O folhetinesco “Amazona” (1986) legaria ao autor o segundo Jabuti. E “A senhorita Simpson”, de 1989, viria a se tornar seu maior sucesso de vendas.

Mais um Jabuti, desta vez na categoria romance, lhe seria entregue por “Um crime delicado” (1997). A servir de interseção temática com os dois livros escritos logo antes — “Breve história do espírito” e “O monstro” — está a sombra da morte.

Acerto de contas

Quase um prelúdio para a virada iniciada em “O voo da madrugada”, de 2003. No conto que abre o livro ganhador do Prêmio Portugal Telecom, o protagonista viaja com os restos mortais das vítimas de um acidente aéreo quando se vê bafejado pelo gesto terno da menina que encosta a cabeça em seu ombro. Alegórica, a passagem assinala o movimento feito por Sérgio desde então. Uma espécie de acerto de contas com a infância e com a própria biografia, que teria continuidade nos trabalhos mais recentes, como “O homem-mulher”(2014), “O conto zero”(2016) e “Anjo noturno”(2017).

O penúltimo livro, aliás, traz uma imagem sintética dessa rotação. Está no conto “Papeizinhos rasgados”. Ao atirar pedaços de papel pela janela do apartamento, o protagonista faz voar o que não alçara voo. “A ressaca do mar batendo na antiga amurada da Praia do Flamengo”, “Miles Davis tocando trompete baixinho no ouvido da moça”, “um adeus no aeroporto”, “o demônio de cada um”, “a limo no cais”, “o vazio de Deus”. A brevidade da vida então se converte em memória, até que a chuva cai, forma a corrente d água e leva os papéis em seu curso. Assim como a morte levou Sérgio Sant’Anna, após sete dias de luta contra a Covid-19.

* Marcelo Moutinho é jornalista e escritor.