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Oito meses após a morte de Victor Heringer, 'Glória' ganha reedição, e poesias inéditas saem em 2019

Produção do autor começa a ser organizada pela família e por editores
O escritor Victor Heringer. Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo
O escritor Victor Heringer. Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo

RIO — A morte precoce de Victor Heringer, aos 29 anos em março deste ano, aumentou ainda mais o interesse pela obra do escritor celebrado como um dos grandes de sua geração. Oito meses após o choque, novidades em torno de sua produção começam a surgir. Entre os destaques estão a reedição de seu primeiro romance, "Glória", e uma coletânea com poemas do autor — entre eles alguns inéditos —, prevista para sair no primeiro semestre de 2019. Além disso, sua crônica "Os sapatos do meu pai", será publicada em versão bilíngue em Nova York.

Editado pela primeira vez pela 7Letras, "Glória", que rendeu ao escritor o Prêmio Jabuti em 2013, sai agora pela Companhia das Letras (mesmo selo de seu segundo romance, "O amor dos homens avulsos", de 2016). Segundo sua agente literária, Marianna Teixeira Soares, a publicação da obra por uma grande editora pode aumentar ainda mais a procura por seus livros.

— Acho que ele ainda vai ser muito lido. Foi com"Glória" que ele passou a ter uma visibilidade maior. Esse romance fez ele ter uma projeção e circulação comercial mais forte — afirma Marianna.

Capa do Livro 'Glória' Foto: Divulgação
Capa do Livro 'Glória' Foto: Divulgação

O novo volume de poesias, que também será editado pela Companhia, está sendo organizado pelo irmão do escritor, Eduardo Heringer. Segundo Marianna, o livro será composto de seu primeiro livro, "Automatógrafo", com uma seleção de poemas inéditos e avulsos. O material está sendo garimpado nos arquivos do escritor.

— Ao trabalhar os textos que ele não publicou, existe um grande cuidado para entender o que ele realmente gostaria que estivesse disponível para os leitores. Estamos olhando o acervo com carinho para preservar sua voz autoral. Apesar de sua obra ser pequena, é muito consolidada. Há uma identidade literária muito definida, e é isso que está nos guiando — aponta a agente da obra de Victor.

Outro desafio ao garimpar a obra do autor é sua difusão em diferentes plataformas. Victor produziu para diversos lugares como a revista "Pessoa", o Instituto Moreira Salles (IMS) e a revista "Continente", além de vídeos para YouTube e textos em blogs pessoais. Mirna Queiroz, editora da "Pessoa", que publicou crônicas do autor durante três anos, defende que sua obra chegue a mais leitores.

— Victor dizia desde o começo: "Quero ser lido". Ele se empenhava muito para que sua obra circulasse — conta Mirna.

Uma das crônicas escritas para a "Pessoa" em 2014, “Os sapatos do meu pai”, será agora publicada numa versão bilíngue para uma antologia da revista. Ela será apresentada em Nova York, no The Pessoa International Literary Festival, programa de intercâmbio entre a publicação brasileira e a revista americana "Words Without Borders ", que ocorre nos dias 16 e 17 de novembro .

Ainda não há um projeto concreto para reunir as crônicas de Victor Heringer, porém Mirna espera que em breve essa produção possa ser organizada e ganhe uma publicação própria. Os direitos autorais da obra são da família do escritor. A editora destaca que sua produção mais recente na revista tinha um caráter cada vez mais politizado.

— Na crônica "O muro", publicada em fevereiro de 2017, ele escreve, por exemplo: "A trincheira é o sonho do muro, assim como o muro é o sonho da trincheira". Ele tinha uma sensibilidade enorme sobre o que estava acontecendo ao seu redor, era um escritor do seu tempo, muito antenado. Victor não tinha medo das palavras, ele despoluia as palavras, restaurava seu sentido potente e político.

Para Mirna, a superação do luto é ainda um desafio a ser superado por quem trabalhou com o autor.

— Ainda não consigo reler tudo, voltar aos e-mails, é difícil superar. Mas, são textos, principalmente agora, quase urgentes — diz a editora.

Leia a crônica "Os sapatos do meu pai":

1. Eu tentava dar exemplos de baque poético a uma amiga que dizia não entender de poesia, mas queria. Antes, tinha tentado explicar que existem mil, cem mil formas de entender, nem todas totalmente compreensíveis. Tudo isso parecia estranho à minha amiga, acostumada com a razão que constrói pontes e bota aviões no ar, segundo a qual a cor azul só pode ser azul e um sapato só pode ser um sapato. Essa é só uma delas, eu disse, existem outras razões, outras formas de pensar e de ativar os sentidos. Mas um sapato não é um sapato? Respondi: sim e não. Ela fez que ia desistir. Então, recorri a uns versos de Robert Bringhurst, que conheci na tradução espanhola de Marta del Pozo e Aníbal Cristobo (retraduzo aqui. É de um longo poema intitulado Deuteronômio):

[...] As vozes

vieram a mim e me pediram para tirar os sapatos,

e assim o fiz. Esse deserto está cheio de sapatos de homem.

E a chama gritou Sou o que sou.

Um deserto cheio de sapatos de homem. Uma das imagens mais bonitas que há neste mundo, a ausência do homem na grande ausência que é um deserto.

2. Vai fazer uma década que meu pai morreu. Eu ainda uso as roupas que herdei dele: camisas, calças, ternos, de vez em quando gravata. Um par de sapatos pretos, sóbrios, que ele usava para trabalhar e eu, quando tinha que ir a um casamento ou enterro. Agora trabalho cada vez mais de sapatos. Passei a usar cada vez mais os sapatos do meu pai. Como duravam, as coisas de recém-antigamente.

Só agora o couro começou a afrouxar, as solas descolaram, dez anos depois da morte de seu dono original, a milhares de quilômetros de onde está enterrado. Aqui em São Paulo desértica, cheia de sapatos sem homens dentro.

Como duravam, as coisas.