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'Orwell ficaria longe do Twitter se estivesse vivo', diz biógrafo

Pesquisador britânico Richard Bradford afirma que a China é a realização efetiva da distopia '1984', que, segundo ele, também previu best-sellers como 'Cinquenta tons de cinza'
George Orwell, autor de distopias que não saem da lista de mais vendidos, como "A revolução dos bichos" e "1984" Foto: Mondadori/Divulgação
George Orwell, autor de distopias que não saem da lista de mais vendidos, como "A revolução dos bichos" e "1984" Foto: Mondadori/Divulgação

SÃO PAULO — Richard Bradford, professor da Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, se assustou ao ouvir, do repórter do GLOBO, que mais de 20 editoras brasileiras vão publicar, este ano, novas traduções de "A revolução dos bichos" e "1984" , best-sellers distópicos de George Orwell . O escritor britânico, morto há 71 anos, em 21 de janeiro de 1950, caiu em domínio público em 1º de janeiro. Algumas reedições até aposentaram o carismático título "A revolução dos bichos", inventado por um tradutor próximo aos governos militares brasileiros, em favor do literal "A fazenda dos animais" — a fábula sobre o poder foi escrita em 1945, nas barbas da Segunda Guerra Mundial, e saiu por aqui em 1964, já sob a égide da ditadura. Apesar da enxurrada recente de publicações, há apenas uma biografia sobre o autor disponível nas livrarias brasileiras: "Orwell: um homem do nosso tempo", escrita por Bradford e publicada no final do ano passado pela Tordesilhas.

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Em vez de passar em revista os fatos da vida do filho da aristocracia britânica que nasceu na Índia colonial e lutou nas trincheiras espanholas contra o fascismo, o biógrafo preferiu mostrar como a obra de Orwell antecipou questões sociais e políticas que sobrevivem até hoje, entre elas a ameaça do autoritarismo e a xenofobia. Ele ainda levanta uma "previsão"' cultural curiosa na obra do autor: fenômenos como o arrasa-quareteirão "Cinquenta tons de cinza" . Para Bradford, a máquina de escrever livros para as massas presente em "1984" antecipou a lógica de best-sellers do gênero.

Em entrevista por telefone, ele associa o sucesso das distopias por aqui ao perfil do atual governo: "Talvez a popularidade no seu país tenha a ver com o presidente que vocês têm''. A despeito de outra popularidade, a das redes sociais, ele afirmou que, com certeza, se estivesse vivo, Orwell "ficaria bem longe do Twitter''.

O pesquisador britânico Richard Bradford, autor de "Orwell: um homem do nosso tempo" (Tordesilhas) Foto: Divulgação
O pesquisador britânico Richard Bradford, autor de "Orwell: um homem do nosso tempo" (Tordesilhas) Foto: Divulgação

No livro, o senhor pergunta: "se Orwell pudesse se juntar a nós em 2020, o que ele pensaria do mundo?". Se ele pudesse de juntar a nós atualmente, em tempos de posse de Joe Biden, o que ele pensaria do mundo?

Orwell consideraria a derrota de Trump uma pequena vitória do esclarecimento, mas também ficaria angustiado porque 70 milhões de americanos supostamente inteligentes votaram nele apesar de todas as mentiras, todas as fake news. Trump é uma versão bizarra do "Grande Irmão" de "1984". Ele também veria na China a versão atual do pesadelo que ele previu e nos apresentou em "1984" e, em menor medida, em "A revolução dos bichos", que são livros obviamente inspirados na União Soviética, mas que denunciam todos os totalitarismos.

Orwell morreu em 1950, aos 46 anos, e escreveu inspirado na realidade que conheceu. Ele é mesmo "um homem do nosso tempo"?

Orwell é um escritor para todos os tempos. O que ele escreveu, os romances distópicos e a produção jornalística, era tão relevante no pós-guerra quanto é hoje. Ele tentou conscientizar as pessoas de que a ameaça autoritária estava sempre presente, até mesmo nas sociedades mais estáveis.

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Mais de 20 editoras prometeram novas edições de "A revolução dos bichos" e "1984" este ano no Brasil. Esse interesse diz algo sobre a nossa sociedade?

É bem mais que aqui no Reino Unido! Bem, as vendas dos livros de Orwell também aumentaram depois da eleição de Donald Trump. Não que seja da minha conta, e a política brasileira também não é minha especialidade, mas talvez a popularidade de Orwell no seu país tenha a ver com o presidente que vocês têm. Não preciso te dizer que a democracia brasileira parece ter arrumado um líder que não respeita a verdade...

Depois que o Twitter suspendeu a conta de Donald Trump, o filho dele disse que não havia mais liberdade de expressão nos Estados Unidos e que "estamos vivendo em '1984'". Se Orwell era crítico da União Soviética, mas era um socialista, como sua obra pode ser instrumentalizada até mesmo pela direita autoritária?

Na época de Orwell, a esquerda fechava os olhos para o que acontecia atrás da Cortina de Ferro. Depois, teve que admitir que mentia para si mesma e para os outros. Hoje o comunismo não existe mais nem na China, que é um estado capitalista autoritário. Mas os esquerdistas que ainda admiram o país têm que abrir os olhos para os piores aspectos daquele governo, que foram previstos por Orwell. Depois da morte dele, a direita americana também transformou "1984" em arma anticomunista. As pessoas fazem referências à obra de Orwell e ao vocabulário dele, expressões como "Grande Irmão", por exemplo, com as mais diversas intenções. Mas, sim, é bizarro que o filho de um presidente que mentiu compulsivamente durante quatro anos faça declarações desse tipo. O adjetivo orwelliano é muito usado para manipular.

Existe uma definição objetiva do adjetivo "orwelliano"?

A maioria das pessoas adota para descrever a atmosfera dos romances mais conhecidos de Orwell, para denunciar regimes de horror e repressão. Mas podemos usar para expressar concordância com as causas pelas quais ele lutou, como a liberdade de expressão e a democracia. Por que não empregar "orwelliano" dessa maneira?

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O senhor escreveu que Orwell diagnosticou que a xenofobia faz parte da "essência do caráter inglês". Ele receitou um antídoto para isso?

A xenofobia das classes trabalhadoras e médias inglesas enraivecia e entristecia Orwell, mas ele nunca ofereceu solução para isso. Ele próprio era um patriota nostálgico, que amava e se envergonhava da Inglaterra. Ao percorrer as cidades do norte para escrever “O caminho para Wigan Pier”, ele conheceu mineiros esfomeados que apoiavam não a esquerda, mas o líder o fascista Oswald Mosley, para quem era “Inglaterra em primeiro lugar”. É a mesma xenofobia que foi explorada pelos conservadores e pela extrema-direita na campanha mentirosa do Brexit.

O senhor também afirmou que o Brexit triunfou porque o eleitorado "consideraria seu direito democrático a alegre aceitação de mentiras como alternativa preferível aos fatos".

As redes sociais fizeram desaparecer noções como verdade, fatos e evidências. As pessoas parecem viciadas no mundo de medo e preconceito que elas encontram ali.

Orwell teria um perfil no Twitter?

(Risos.) Acho que ele ficaria longe do Twitter. Ele não conheceu nada parecido com as redes sociais, mas lamentou o advento da televisão e chegou a trabalhar no rádio, mas não gostou. Ele gostava de jornalismo factual escrito com clareza.

O senhor afirma que Orwell antecipou "a natureza esquemática" de best-sellers como "Cinquenta tons de cinza" ao inventar, em "1984", o "Departamento de Ficção", onde máquinas escreviam livros para as massas.

Você já tentou ler "Cinquenta tons de cinza"? Comecei a ler e não suportei, pulei umas páginas e vi que todos os capítulos eram iguais: preliminares, sexo, preliminares, sexo. O livro podia ter 80 ou 1.000 páginas. Não faz diferença, é só repetição. A literatura escrita por máquinas em "1984" virou realidade com esses best-sellers. Orwell desdenhava da literatura popular.

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Para Orwell, qual era a função da literatura?

Orwell era um ficcionista e um escritor político. Os livros jornalísticos dele, como "O caminho para Wigan Pier", “Homenagem à Catalunha" e "Na pior em Paris e Londres”, não são menos literários do que os romances. Ficções como "A revolução dos bichos" e “1984” não são puro entretenimento, mas comentam a sociedade, como faz o bom jornalismo. Para ele, literatura e jornalismo tinham o mesmo propósito. Os primeiros romances dele, como “A filha do reverendo” e "A flor da Inglaterra", são pouco orwellianos. Orwell encontrou sua voz ao dar tratamento literário a suas ideias políticas.

Capa de "Orwell: um homem do nosso tempo", do britânico Richard Bradford Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Orwell: um homem do nosso tempo", do britânico Richard Bradford Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Orwell: um homem do nosso tempo”

Autor: Robert Bradford. Tradução: Renato Marques de Oliveira. Editora: Tordesilhas. Páginas: 376. Preço: R$ 69,90.