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Paul Valéry tem dois clássicos lançados no Brasil, que reforçam a escrita instigante do autor

'A arte de pensar' reúne ensaios filosóficos, enquanto 'Feitiços', um de seus mais importantes livros de poesia, ganha primeira tradução completa no país
PV Rio de JAneiro (RJ) 05/08/2013 Paul Valéry Foto Paul Valéry
PV Rio de JAneiro (RJ) 05/08/2013 Paul Valéry Foto Paul Valéry

“Dir-se-ia que o mundo não é muito mais antigo do que a arte de fazer mundo”, afirma ironicamente Paul Valéry num dos ensaios filosóficos incluídos na coletânea “A arte de pensar”, que acaba de sair pela Bazar do Tempo. Nela encontramos uma escrita ensaística, bela e instigante, que mobiliza autores como Leonardo da Vinci, Edgar Allan Poe, Mallarmé, Rembrandt, Descartes, Bergson e Nietzsche, entre outros. Nesta arte de pensar que não cessa de fazer e refazer mundo, Valéry associava artistas, poetas e filósofos.

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Assim, é interessante que esta edição cuidadosa de suas prosas filosóficas coincida com a publicação de um de seus mais importantes livros de poesia, “Charmes”. Vários dos poemas que compõem esta obra clássica, publicada na França há quase um século, já foram traduzidos anteriormente, mas o volume agora lançado com o título de “Feitiços” contém sua primeira tradução brasileira completa, pela Iluminuras. Traz também uma ótima apresentação e um estudo como posfácio, ambos assinados pelos tradutores, que optaram por transpor rimas e métrica, refazendo em português as formas poéticas.

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Resultado de um fazer criativo, poema é coisa feita — expressão que no dizer popular sugere também um feitiço ou encantamento. A ambiguidade entre fatura e feitiçaria atravessa “Charmes”. O título original evoca tanto efeitos de sedução quanto de encantamento, e designa ainda pequenos amuletos. A feitiçaria é sugerida também na epígrafe retirada das “Bucólicas de Virgílio”, obra que o próprio Valéry traduziu do latim. “Deducere carmen”, isto é, o verso enfeitiça, seduz.

A feitiçaria de Valéry repousa sobre intermináveis processos criativos que ele descreve e comenta em algumas de suas muitas prosas teóricas. Num testemunho em torno do “Cemitério marinho”, um dos poemas mais conhecidos de “Charmes”, afirma ter convivido quase dez anos com versos inacabados: “foram para mim uma ocupação de duração indeterminada — um exercício mais do que uma ação, uma busca mais do que uma liberação, uma manobra de mim por mim mesmo, mais do que uma preparação visando o público” (Œuvres I, Gallimard).

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Na contramão das vanguardas, o investimento de Valéry no fazer poético tradicional e o seu uso de formas fixas limitaram inicialmente sua recepção pelos modernistas brasileiros. De acordo com o posfácio dos tradutores, sua obra poética teria passado a despertar maior interesse quando o modernismo repensou escolhas formais, por exemplo com João Cabral de Melo Neto.

Coisa feita em infindável processo, a poesia de Valéry é também “cosa mentale”, como dizia Leonardo da Vinci sobre a pintura. Não por acaso, o pintor renascentista era um de seus artistas favoritos. Os interesses teóricos, que fizeram de Valéry também um mestre no gênero do ensaio, conferem à sua produção poética um caráter reflexivo que encontra ecos na produção brasileira contemporânea. Podemos citar, por exemplo, o “Cemitério Marinho” de Edimilson de Almeida Pereira, que desloca e relê elementos do poema homônimo de Valéry para tematizar o trauma histórico do tráfico marítimo de pessoas escravizadas.

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Os ensaios de Valéry mostram que ele foi um leitor perspicaz de filósofos como o clássico Descartes ou seu contemporâneo e amigo Henri Bergson, que pensou a duração e a memória. Também o poeta se interessava por estas experiências internas do tempo, em suas complexas relações com a linguagem e com o “eu” pensante. Tais questionamentos atravessam os poemas de “Feitiços”.

“Fragmentos do Narciso”, por exemplo, multiplica a voz poética em interessantes efeitos de espelhamento e endereçamento: “Ninfa nenhuma, nem amiga, assim me atrai/ Como fazes à onda, eu em mim inesgotável!...” Em “A Pítia”, ao contrário, a referência clássica ao transe profético da sacerdotisa grega permite pensar uma experiência não subjetiva da linguagem : “Voz entre vozes/ Que sabe quando soa também/ Não ser mais a voz de ninguém/ sendo a das ondas e dos bosques.”

As duas figuras remetem a aspectos opostos de processos criativos que, para Valéry, constituíam verdadeiras experiências de pensamento: seu fazer poético era investigação, na linguagem, do movimento incessante do pensar.

O antigo tema da relação (e das tensões) entre poesia e filosofia perpassa subterraneamente todos os ensaios incluídos em “A arte de pensar”, como sugere aliás a introdução da tradutora. Mas, para abordá-lo diretamente, Valéry introduz de modo estratégico um terceiro termo: a pintura, em particular a de Leonardo da Vinci. A figura do pintor renascentista, e sua compreensão da arte como exploração intelectual do mundo, lhe permite criticar o clichê que vê “os filósofos como seres sem mãos e sem olhos e os artistas com cabeças tão reduzidas a ponto de nada mais possuírem além de instintos...”

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De acordo com Valéry, a filosofia, compreendida como obra escrita, pode ser vista como um gênero literário. Entretanto, a arte destes “artistas que não querem ser artistas” não seria como a dos poetas, baseada na ressonância das palavras. Para ele, a filosofia seria uma poesia abstrata. Sua sensibilidade de poeta é efetivamente atraída para a materialidade textual das obras filosóficas, em instigantes comentários.

No “Discurso do método” de Descartes, por exemplo, ele encontra desdobramentos reflexivos da voz lírica: “o que atrai meu olhar é (...) o emprego do Eu (...) numa obra dessa espécie, e o som da voz humana.” Para Valéry, nessa voz que se vê espelhada no pensamento consiste o charme — “no sentido mágico deste termo” — do cogito cartesiano.

A atualidade e a fecundidade da obra do poeta-ensaísta repousa em grande parte sobre seu trânsito singular entre poesia e filosofia. Basta pensarmos na importância da prosa teórica de Valéry para o filósofo contemporâneo Hans Blumenberg (1920-1996), que examinou o papel dos mitos e das metáforas na constituição dos sistemas de pensamento, e mesmo nas ciências.

Patrícia Lavelle é poeta, tradutora e professora da PUC-Rio, com doutorado em Filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris)