Desde as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2015, o educador Paulo Freire voltou a ser associado à “doutrinação marxista”, acusação repetida originalmente pelos apoiadores do golpe militar de 1964. O pernambucano, que completaria 100 anos neste domingo (19), chegou a ser chamado de “energúmeno” pelo presidente Jair Bolsonaro . Os ataques do bolsonarismo são tão recorrentes que, nesta quinta-feira (16), a Justiça Federal do Rio determinou que a União “abstenha-se de praticar qualquer ato institucional atentatório à dignidade” do Patrono da Educação Brasileira , que morreu em 1997.
Todavia, a fúria ideológica do governo federal e de movimentos como o Escola Sem Partido não impediu a palavra do autor de “Pedagogia do oprimido” de continuar se espalhando. E Freire está mais popular do que nunca. Novos livros e uma exposição marcam o centenário do intelectual que é referência em universidades estrangeiras
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Desde 2018, quando ganharam um novo projeto gráfico, que traz na capa a caligrafia do próprio Freire, as vendas das 33 obras do educador cresceram 15%. Alguns títulos registraram aumentos extraordinários, como “A pedagogia da libertação em Paulo Freire” (270%), “Educação como prática da liberdad” (401%) e “Educação pela mídia” (700%). A procura pelos títulos mais conhecidos, “Pedagogia da autonomia” e “Pedagogia do oprimido” cresceu cerca de 10%. Juntas, as duas obras venderam quase meio milhão de cópias nos últimos 10 anos.
Novo público
Freire é publicado desde os anos 1960 pela Paz & Terra, antiga editora de esquerda incorporada pelo Grupo Record em 2012. Para celebrar o centenário do educador, a editora preparou edições especiais de “Pedagogia da autonomia” (já nas livrarias) e “Pedagogia do oprimido”(no prelo), além de três novos títulos. Dois deles já estão disponíveis: “A palavra boniteza na leitura de mundo de Paulo Freire”, organizado pela viúva, Nita , e “Testamento da presença de Paulo Freire, educador do Brasil”, reunião de textos de figuras como o linguista americano Noam Chomsky , o filósofo Mario Sergio Cortella e o ex-presidente Lula .
No ano que vem, será lançado “Meus registros de educador”, que compila as notas que Freire tomava nas mais diversas superfícies, como maços de cigarro. O livro trará comentários inéditos do educador sobre autores como Karl Marx , Antonio Gramsci e Aldous Huxley .
Do YouTube a Chomsky: Como Felipe Neto se transformou no mais novo intelectual da internet
Editora-executiva da Paz & Terra, Livia Vianna não credita o sucesso comercial apenas a uma reação do público à perseguição da extrema direita. Segundo ela, jovens leitores vêm sendo apresentados ao educador por figuras populares na internet.
— Há um pessoal mais novo que conheceu as obras assistindo a youtubers progressistas, como Sabrina Fernandes e Rita von Hunty — afirma Livia. — Em todas as manifestações da esquerda se veem bandeiras e bottons com o rosto de Freire. Ele virou um símbolo e vemos reflexo disso nas vendas.
Bússola para influencer
O professor e ator Guilherme Terreri, mais conhecido do público como Rita von Hunty, a dona de casa impecavelmente vestida que fala de política no canal Tempero Drag, no YouTube, tem Freire como uma “bússola” para o seu trabalho. Dona Ritinha cita “Seu Paulinho” com frequência e, na última quinta-feira, publicou um vídeo sobre o centenário do educador.
— Tanto o trabalho do Guilherme quanto o da Rita estão ancorados na pedagogia freireana, que me encanta por ensinar que não estamos aqui para aceitar as coisas como elas estão, mas para entender como elas chegaram a esse ponto e pensar o que podemos fazer para que sigam em outra direção — explica Terreri, que comemora a boa receptividade de seus quase 900 mil inscritos às ideias do educador. — Com Freire, tenho conseguido mobilizar afetos saudáveis numa época de afetos tristes.