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Pedro Mairal: 'Escrever pensando em produzir obra-prima é uma armadilha'

Sucesso no Brasil com 'A uruguaia', autor argentino lança agora saga familiar 'Salvatierra'
Pedro Mairal, escritor argentino Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Pedro Mairal, escritor argentino Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Os personagens do escritor argentino Pedro Mairal não perdem a oportunidade de cruzar o Rio da Prata. Em “A uruguaia” , romance que vendeu mais de 20 mil cópias (físicas e digitais) no Brasil desde o lançamento, em 2018, o escritor quarentão Lucas Pereyra foge do tédio conjugal para Montevidéu, onde tem um dinheiro a receber e a esperança e encontrar Magali Guerra, uma moça com quem se engraçou num festival literário. Em “Salvatierra”, recém-chegado às livrarias brasileiras, os irmãos Miguel e Luis viajam ao Uruguai para descobrir os segredos do pai, um pintor enigmático. Em “Uma noite com Sabrina Love”, justiça seja feita, ninguém se manda para o Uruguai, mas um adolescente atravessa estradas alagadas para encontrar uma atriz pornô em Buenos Aires.

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Ano passado, o próprio Mairal cruzou de vez Rio da Prata: mudou-se para Montevidéu com a família. Em entrevista ao GLOBO, ele diz sentir o Brasil bem perto:

— Percebe-se a proximidade do Brasil em expressões como “que demás”, que não usamos na Argentina. Até alguns ritmos soam brasileiros — conta. — Nos meus livros, cruzar o rio até o Uruguai é uma quase uma travessia metafísica, como Alice atravessando o espelho. Como argentinos, meus personagens têm uma visão ingênua do Uruguai, mas aqui estão fora de sua zona de conforto e se transformam.

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Montevidéu ainda é um quebra-cabeças que Mairal vai montando pouco a pouco. Às vezes, ele sai para espiar as gravações do filme baseado em “A uruguaia”. O projeto foi financiado por mais de dois mil produtores associados que compraram cotas a partir de US$ 100 e ganharam o direito de palpitar no roteiro, atuar como figurantes e até participar de uma eleição que escolheu os atores Fiorela Bottaioli e Sebastián Arzeno para interpretar Guerra e Pereyra.

— Quando adaptaram de “Uma noite com Sabrina Love” (em 2000) , não participei de nada. Agora, colaborei um pouco com roteiro de “A uruguaia” — diz. — Ter um romance adaptado para o cinema é sempre uma experiência interessante. Você sente que estão mudando todo o seu livro, mas tem que desapegar.

Projeto literário inconsciente

“Uma noite com Sabrina Love” foi publicado em 1998, depois que Mairal ganhou o concurso literário do jornal “El Clarín”. “Salvatierra”, editado agora no Brasil, foi escrito no início dos anos 2000 e lançado em 2008 na Argentina. O romance acompanha Miguel, filho caçula do pintor Juan Salvatierra, que perdeu a fala depois de um acidente na infância e passou a vida trabalhando numa única obra: um mural de quase quatro quilômetros, formado por rolos de tela, no qual retratou em detalhes seis décadas de vida em sua aldeia. Em todas as telas, o rio que separa a Argentina e o Uruguai se arrasta como se fosse o próprio tempo. Após a morte do pai, ao revisitarem a obra antes de vendê-la a um museu holandês, Miguel e Luis percebem que o rolo referente ao ano de 1961 está faltando. Em busca do rolo sumido, os irmãos cruzam o Rio da Prata.

O ambicioso projeto artístico de Salvatierra (“aquele entrelaçado de vidas, de gente, animais, dias, noites, catástrofes”) sufoca os filhos, que escapam para Buenos Aires assim que podem. Miguel achava que devia fazer tudo da maneira gigantesca do pai, “ou então não fazer nada”. Decide ser escritor porque “a página é o único lugar do universo que papai me deixou em branco”. A escrita de Miguel é quase o oposto da pintura de Salvatierra. Seu estilo é conciso, em nada exagerado. É o estilo do próprio Mairal, que mescla lirismo e economia verbal.

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— Alguns escritores são mais pragmáticos e têm projetos literários mais conscientes. O meu é mais inconsciente. Talvez seja como aquele conto de Borges em que um homem se põe a pintar o universo, pinta os mares, as cidades, tudo o que existe, e, no fim, percebe que desenhou as linhas do próprio rosto — explica Mairal. — Não sei que desenho todos os meus livros vão formar no final.

Entre poemas e o uquelele

Esse “desenho final” decerto não será formado apenas por romances e contos, mas também por poemas e canções. Mairal já publicou cinco livros de poesia e uma antologia com todos os seus “pornossonetos”. Na adolescência, compunha canções. Depois, a “árvore da palavra” foi crescendo: vieram poemas, contos e romances. Em 2015, voltou à música. Antes de passar ao violão, treinou acordes no uquelele (Pereyra, de “A uruguaia”, dizia era melhor tocar bem uquelele a tocar mal violão). Com Rafael Otegui, formou a dupla Pensé Que Era Viernes, que mistura tango, rock e o ritmos folclóricos da Bacia do Rio da Prata. Antes da pandemia, a dupla lançou uma canção nas plataformas de streaming, “La Tormentosa”, mas devem gravar outras assim que Mairal for a Buenos Aires. Entre 2019 e 2020, o escritor apresentou o programa de rádio “Tachame el Nobel” (algo como “Deixe o Nobel pra lá”, em português), no qual conversava com escritores e compositores sobre seus ofícios. A trilha de abertura era a canção “A mulher do fim do mundo”, de Elza Soares .

— Em quase 100 entrevistas, aprendi que as coisas saem melhor quando nos permitimos brincar. Sentar-se para escrever pensando em ganhar o Nobel, em produzir uma obra-prima, é uma armadilha — conta.

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Autor de quatro romances (três deles disponíveis no Brasil), Mairal chegou a entrar na faculdade de medicina, mas foi “derrotado pelas ciências”. Começou a matar aulas num café, onde aproveitava para ler. A mentira durou meses, mas quando foi enfim descoberta pela família, a briga foi feia. Mairal, que já escrevia, explicou aos pais que preferia estudar letras e pediu que eles assistissem a “Sociedade dos poetas mortos” para entenderem melhor sua decisão. No filme, um rapaz se mata porque os pais o proíbem de seguir a carreira teatral.

— Eu não pensava em me suicidar. Foi tudo manipulação. E funcionou! Meus pais voltaram do cinema pálidos, dizendo “sim, é importante você estudar o que quiser” — conta. — Meu desejo de escrever sempre me levou a superar obstáculos. Sou capaz de mover montanhas para escrever. É minha vocação, meu chamado.

Serviço:

“Salvatierra”

Autor: Pedro Mairal. Editora: Todavia. Tradução: Mariana Sanchez. Páginas: 112. Preço: R$ 54,90.