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Pesquisadores defendem parceria com outras espécies e mostram o que aprender com animais, plantas e até bactérias

Estudos apontam que outros seres e até os gases atmosféricos têm seus próprios desejos, crenças e manias
Na cidade do México, menina leva seu cão a uma igreja para receber a bênção de Santo Antônio, padroeiro dos animais domésticos Foto: GUSTAVO GRAF MALDONADO / REUTERS
Na cidade do México, menina leva seu cão a uma igreja para receber a bênção de Santo Antônio, padroeiro dos animais domésticos Foto: GUSTAVO GRAF MALDONADO / REUTERS

Autora do recém-lançado “Que diriam os animais: Fábulas científicas” (Ubu), que questiona as formulações tradicionais sobre os bichos, a belga Vinciane Despret, psicóloga e filósofa das ciências, adotou a cadela Alba em um abrigo. Por ter vivido muitos anos na rua e desconfiar dos humanos, Alba não gosta de movimentos bruscos. Até mesmo um carinho inesperado a assusta. A chegada do bicho mudou completamente o ritmo de vida da hiperativa pesquisadora, que vem aprendendo a ser paciente para ganhar sua confiança. Em um ensaio do século XVI, Michel de Montaigne se perguntava se era ele que brincava com o seu gato ou se era o seu gato que brincava com ele. Séculos depois, Despret aposta no reforço: não é ela que tem Alba, é Alba que a tem.

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A saudosa cadela Cayenne Pepper também influenciou a escrita da filósofa americana Donna Haraway, autora de outro lançamento recente por aqui, “Manifesto das espécies companheiras” (Bazar do Tempo). O livro propõe uma nova sociabilidade entre humanos e animais, uma coevolução que abrace nossas diferenças com eles. A partir da sua experiência com Cayenne e de seus estudos na área, Haraway defende o que ela chama de “alteridade significativa”, ou melhor: uma parceria com outras espécies que seja marcada por afinidades, e não pela dominação.

As ideias de Despret e Haraway refletem uma mudança cultural nas relações com os animais e com a natureza. Ela ganha espaço nas universidades, onde uma corrente muito em voga combina ciência e humanidades para entender melhor o que nos cerca. Quando, na semana passada, o Papa Francisco chamou as pessoas que preferem pets a filhos de “egoístas”, circularam na internet memes de Haraway coriscando o líder religioso com o olhar. Figura pop (ela aparece até como personagem no anime japonês “Ghost in the shell 2”, de 2004), a filósofa é conhecida pelo slogan “Faça parentes, não bebês”, que amplia a ideia moderna de parentesco.

— À medida que cresce a conscientização sobre o antropoceno [termo para designar uma nova época geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra] , mais nos damos conta de que não estamos sós no mundo — diz Despret. — As pessoas percebem que as coisas estão se degradando e se tornam mais atentos ao que está ao seu redor. Por exemplo, percebem que há menos pássaros nos seus jardins. A ideia de que o mundo não tem alma começa a ficar mais problemática.

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Soa como uma contradição, mas, nos últimos tempos, os estudos das humanidades passaram a se voltar também para o não humano. Eles apontam que os animais, tanto domésticos quanto selvagens, assim como as bactérias, as plantas, os fungos e até os gases atmosféricos têm seus próprios desejos, crenças e manias.

— Muito do que se costuma pensar sobre os animais se deve a concepções pre-estabelecidas sobre seu lugar como inferior, pois supostamente sem linguagem, sem inteligência, sem moralidade... Mas quando se faz o esforço de pensar essas qualidades para além do parâmetro humano, descobrimos coisas incríveis — diz Alyne Costa, professora de Filosofia da PUC-Rio e coorganizadora da futura coleção Desnaturadas, da Bazar do Tempo, que reúne trabalhos de filósofas, cientistas e pesquisadoras “atentas aos seres mais que humanos com quem compartilhamos o mundo”.

O selo, aliás, prevê a edição de mais um título de Despret, “Autobiografia de um polvo”, além de “Uma outra ciência é possível”, da belga Isabelle Stengers, e “Cosmopolíticas da Terra”, da própria Alyne Costa.

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Olhar corrompido

Os estudos de Despret apontaram que a compreensão científica dos bichos é muitas vezes corrompida pela incapacidade de enxergá-los como seres plenos. A filósofa mostra que algumas pesquisas sobre os ratos falhavam porque as condições de vida destes últimos em laboratório nada tinham a ver com as condições de seu habitat natural. Também afirma que o conceito de que fêmeas primatas são submissas têm muito a ver com o machismo de certos primatólogos. E ainda lança perguntas curiosas como: “É educado urinar na frente dos animais?”, “Existem espécies matáveis?” e “Com quem os extraterrestres gostariam de negociar?”.

No início do mês, uma porquinha australiana chamada Pigcasso causou furor ao produzir uma obra de arte vendida por R$ 150 mil. Muita gente viu o caso como piada. Mas “Que diriam os animais: fábulas científicas” leva a estética animal a sério, com um capítulo inteiro só para responder à pergunta “os animais podem pintar?”. A autora Vinciane Despret, porém, não chega a uma conclusão.

Em um ponto todos esses estudiosos parecem concordar: é preciso acabar com a ideia de que o homem é o centro de tudo. Publicado no fim do ano passado, “Por que olhar os animais” (Fósforo), do ensaísta John Berger (1926-2017), lembra que as invenções produtivas dos últimos séculos — a ferrovia, a eletricidade, as esteiras de transporte, o carro motorizado, os fertilizantes... — marginalizaram a vida selvagem e transformaram os bichos em meros produtos de consumo. Com isso, deixamos de observá-los. Só que eles não deixaram de nos observar. Se nos voltarmos outra vez aos animais, diz Berger, veremos as marcas daquilo que fomos e perdemos.

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Filho dos cientistas Carl Sagan e Lynn Margulis, o ensaísta e filósofo da ciência Dorion Sagan acredita que é a própria noção de humanidade que está sendo colocada em xeque. Ele é autor de “O livro de seres invisíveis” (Dantes), outro lançamento no Brasil, que apresenta 30 seres microscópicos cruciais para a vida na Terra.

Margulis, a mãe de Sagan, criou o conceito de simbiogênese, uma teoria evolucionária segundo a qual indivíduos de naturezas distintas se unem para formar um novo indivíduo. Seus estudos demonstraram que os nossos tecidos e órgãos dependem de bactérias para funcionar. Em “O manifesto das espécies companheiras”, Donna Haraway adota o conceito e diz que suas próprias células estão sendo “colonizadas” por sua cachorra Cayenne, através de trocas orais. “Estamos treinando uma à outra em atos comunicacionais que mal entendemos”, escreve a autora. “Somos, constitutivamente, espécies companheiras. Nós criamos uma à outra na carne”.

Organismo multiespécies

Da mesma forma, o livro de Sagan nos leva a ver o nosso corpo como um organismo multiespécies.

— Os seres humanos são apenas uma espécie de cerca de dez a trinta milhões que existem atualmente — diz Sagan. — Assim, numericamente, apesar de nossa incrível autoabsorção (ao ponto de pensar que Deus é um gigante humano ou que, mesmo que “Ele” não seja, o “Homem” pode substituí-lo!), somos uma fração da diversidade biológica presente e pré-histórica da Terra. Cientistas sociais e outros têm muito a aprender estudando nossos ancestrais não humanos, que se espalharam em toda a Terra e tornaram um ecossistema de trabalho há mais de três bilhões de anos.