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Poeta uruguaia de 97 anos que encantou Cecília Meireles só agora chega ao Brasil

Vencedora do Cervantes em 2018, Ida Vitale é uma das principais vozes da literatura latino-americana
A poeta Ida Vitale Cervantes em 2019, na Cidade do México Foto: JUAN BOITES / Agência O Globo
A poeta Ida Vitale Cervantes em 2019, na Cidade do México Foto: JUAN BOITES / Agência O Globo

RIO — O escritor colombiano Álvaro Mutis dizia invejar quem descobre pela primeira vez os versos de Ida Vitale, pois um “prazer insuspeito” o aguarda. Graças ao lançamento de “Não sonhar flores” (Roça Nova), primeira antologia no país dedicada à autora uruguaia, este deleite se tornou enfim acessível ao público brasileiro. A publicação, aliás, corrige um lapso histórico. Aos 97 anos, Vitale é uma das maiores poetas vivas da América Latina, vencedora de quase todos os prêmios importantes da língua espanhola (incluindo o Cervantes, o Nobel do idioma, em 2018).

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Em 2019, ela foi escolhida pela BBC como uma das 100 mulheres mais influentes e inovadoras do mundo. Sua lista de admiradores é longa e prestigiosa: vai de Octavio Paz a Cecília Meireles, que em uma conferência proferida em 1956 a incluiu entre as mais importantes representantes de sua geração. “Estas jovens escritoras ( latino-americanas ) chegam prontamente ao centro de todos os temas: a mentira do corpo; o presente que já é passado e recordação; a cada instante; o ar, inimigo que toma lugar dos ausentes —  assim recolhe Ida Vitale em breves poemas o que a vida lhe vai ensinando”, apontou a brasileira.

Quase sete décadas após os elogios de Meireles, Vitale permanece desconhecida no Brasil. A poeta, contudo, não se incomoda com a injustiça.

— Para mim, ( a demora em ser traduzida no Brasil ) nunca foi um problema ou uma carência — diz ela, em uma entrevista realizada via Zoom, de sua casa, em Montevidéu. — As fronteiras da língua existem. Eu mesmo gosto de traduzir poesia, mas o resultado pode ser aleatório. Havia um interesse recíproco entre mim e os escritores brasileiros, mas nunca tive relações pessoais com eles. Já naquela época havia pouca comunicação entre a literatura dos nossos países.

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"Não sonhar flores” reúne poemas  de seis livros, de “Palabra dada” (1953) a “Trema” (2005), compondo um amplo painel dos temas e das obsessões da autora. Nos versos, a natureza é fugidia em seus movimentos, assim como a linguagem (“Palavras de mar profundo/ a cada instante sobem para morrer/ às centenas, contaminando peixes”) e a lembrança (“terá que apagar a memória/ quem passou sobre brasas/ quem quis apagar cada passo/ de passageiro pé fantasma”).

O que se vê, nesses 50 anos de escrita compilados no livro, é uma poeta que não tem medo de abraçar suas dúvidas e ambiguidades. A tensão da existência é mais jogo do que dor. Mesmo traiçoeira, a névoa é "aliada, não inimiga" — “tudo é península, para quem sabe”, escreve. Os "planetas tramam", a "História empapa" e o "vento não move". Anoitece “o dia todo” e a luz é quase sempre “obtida pela sombra”.

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Nascida em 1923, a autora é a última representante da chamada Geração de 45, composta por nomes do calibre de Mario Benedetti, Ángel Rama (com quem foi casada) e Juan Carlos Onetti (considerado o patriarca do grupo). A própria poeta, porém, não vê semelhanças estéticas entre os expoentes; o único ponto de ligação, segundo ela, é o período histórico. “Todos os meus amigos estão mortos”, costuma dizer.

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A poesia de Vitale, por sua vez, já foi definida como “essencialista”, ou seja, uma escrita que se despe do supérfluo e renuncia a perfeições formais, privilegiando sempre as pontas soltas, os enigmas. Também já se apontou uma espécie de “cosmopolitismo recreativo”, pelo diálogo transatlântico que propõe com outros poetas. Por sinal, no livro “Ato de conciliação”, incluído na antologia brasileira, ela conversa com autores tão distintos quanto Francisco Quevedo e Apollinaire.

— Desde cedo tinha medo de influências muito marcadas — conta. — E sempre achei que uma maneira de fugir disso era ler autores muito distintos ao mesmo tempo. A outra outra maneira seria ignorar o que está ao meu redor, o que pode ser nocivo. Creio que uma das obrigações do escritor é não se deixar se absorver pelo imediato, ou pelo menos não deixar que isto se imponha muito em sua obra. Se você achar alguma influência muito óbvia no que eu escrevo, me avise!

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Vitale ainda não viu seus poemas em português. Sua tradutora, Heloisa Jahn, conta que o processo envolveu “um grande prazer com um grande medo por trás”.

— Sua poesia é alusiva, delicada, abstrata, por vezes quase metafísica — diz a tradutora. — Ela passa pelo filtro de uma percepção delicada e complexa do mundo, da memória, dos sentimentos.

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Pelo menos neste encontro via Zoom, Vitale não quis falar muito de seus próprios livros (“Tenho uma memória muito ruim para os meus títulos”, admite). Sua vida é repleta de mudanças. Em 1974, exilou-se no México por causa da ditadura militar uruguaia.

Em 1989, mudou-se para o Texas, acompanhando o seu segundo marido, Enrique Fierro, morto em 2016. Instalada agora no bairro de Pocitos, na orla de Montevidéu, ela aproveita o confinamento para organizar a sua biblioteca e ler o que lhe aparece na frente. Ainda ativa, participa de lives para centros culturais do mundo todo, sempre auxiliada pela filha Amparo, fruto de seu casamento com Ángel Rama.

— A pandemia coincidiu com a minha instalação definitiva no Uruguai — conta. — Ainda estou me adaptando ao novo clima, e por isso não estou escrevendo. Tenho um romance inacabado, talvez um dia volte a ele. É preciso recuperar um interesse especial, uma certa concentração. Hoje vivo longe do centro, das livrarias, das pessoas, estamos todos trancados em casa. Creio que o mundo vai mudar muito depois dessa pandemia.

“Não sonhar flores". Autora: Ida Vitale.

Editora: Roça Nova.. Tradução: Heloisa Jahn. Páginas: 264. Preço: R$: 63.