Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Por que a procura por livros de fantasia disparou durante a pandemia

Confinados, jovens leitores maratonam sagas de autores como Rick Riordan e Sarah J. Maas atrás de escapismo; vendas cresceram 61%, aponta pesquisa
Vendas de obras de fantasia são impulsionadas por influenciadores comunidades na internet Foto: André Mello
Vendas de obras de fantasia são impulsionadas por influenciadores comunidades na internet Foto: André Mello

Confinada desde o início da pandemia, a engenheira ambiental Bia Sousa, 25 anos, achou uma maneira de driblar a monotonia sem quebrar protocolos sanitários. Ao se iniciar nos livros de fantasia em meados do ano passado, a belo-horizontina encontrou um passaporte para mundos mágicos onde o coronavírus não tem vez. Como o universo da semifada Bryce Quinlan, personagem da trilogia “Cidade da Lua Crescente”, que luta com lobos e arcanjos. Ou ainda as reinterpretações de mitos clássicos de Percy Jackson, um adolescente que interage com deuses gregos.

Marco editorial : Publicado há 20 anos no Brasil, 'Harry Potter' formou leitores e abriu espaço para literatura jovem nacional

Blogueira de livros, ela passou a compartilhar suas novas experiências para os mais de 21 mil seguidores de seu perfil no Instagram, @berco.literario . Pelo feedback dos leitores, ela acredita não ser a única a passear pelas estranhas terras descritas nos livros do gênero. E não é. Uma recente pesquisa da Nielsen, encomendada pelo Grupo Record, comprova essa impressão. Segundo a empresa global de dados, o segmento de fantasia foi o que mais cresceu no mercado editorial, com 61% de aumento no volume de vendas desde março de 2020.

— Sempre que pegava um desses livros eu esquecia de toda a realidade caótica ao meu redor — diz Bia, que costuma participar de sprints (leituras coletivas e maratonas on-line) com os amigos. — Parece que abrimos uma porta e nos trasportamos para outro lugar. Era tudo o que eu estava precisando, e que, confesso, ainda preciso.

Efeito Streisand: Livro censurado por Crivella é vendido por até R$ 250 na internet

Antes mesmo da pesquisa da Nielsen, as editoras já haviam percebido uma turbinada em vários títulos. Pesquisas internas feitas por algumas delas indicam que as obras de fantasia estão sendo mais consumidas por adolescentes e os chamados jovens adultos (até 25 anos) — o que leva a crer num crescimento desse perfil de leitor na pandemia.

Ilustração do livro "O ladrão de raios", da série Percy Jackson Foto: Reprodução
Ilustração do livro "O ladrão de raios", da série Percy Jackson Foto: Reprodução

Os livros do americano Rick Riordan, que sempre venderam bem, passaram a apresentar números fora da curva para a editora Intrínseca. Como o box da série Percy Jackson, da mesma casa, que cresceu mais de 600%. Conhecida por séries como “Corte de Espinhos e Rosas” (Galera Record), a americana Sarah J. Maas vendeu quase 500 mil desde o início da pandemia — o equivalente ao que tinha vendido entre os anos de 2013 e 2020. Já Harry Potter, o mais famoso personagem do gênero, emplacou o primeiro e o segundo lugares do ranking infantojuvenil — algo que, segundo a Rocco, sua editora, não acontecia há muitos anos.

Rastreando perfis nas redes, a Rocco traçou o seguinte cenário: em um primeiro momento da quarentena, os jovens assistiram a todas as séries na Netflix; depois de um tempo, contudo, veio a vontade de desconectar e ‘maratonar’ livros.

— Esse movimento é impulsionado por comunidades, grupos e influenciadores, principalmente no Instagram e no Tik Tok, redes que não eram tão fortes ou que não existiam nas ondas anteriores de leituras dessas séries de fantasia— diz Bruno Zolotar, diretor de marketing e comunicação da Rocco. — E ainda houve o fenômeno dos sprints, que reforçou o aspecto coletivo das leituras.

20 anos depois : 'Harry Potter' se renova como campeão de ‘fanfics'

Professores da Universidade de Passo Fundo (RS), Miguel Rettenmaier e Fabiane Verardi acreditam que, pela profusão de mitologias e personagens lendários, a literatura de fantasia se adaptou com facilidade às textualidades da era digital, como as fanfics e os sprints. Trata-se, para os jovens leitores, um convite à pesquisa pelos buscadores de internet e à conversa entre leitores em redes sociais.

— Sem escola “física”,mais jovens talvez tenham percebido que a leitura também pode entreter e divertir — dizem os pesquisadores, que também coordenam as tradicionais Jornadas Literárias de Passo Fundo. — Pode ser motivo de conversas, de reuniões virtuais... de rodas de conversa nas telas dos mobiles...

Game of Thrones: George R.R. Martin faz lista de seus livros favoritos para os fãs da série

Vale lembrar, porém, que outros gêneros favoritos dos jovens não tiveram o mesmo boom que a fantasia nesse período. A categoria suspense/terror cresceu 35%; ficção geral, 25%; e, graphic novel, apenas 2%. Mas, então, por quê a fantasia?

— É um gênero que permite uma imersão em um mundo com leis próprias, que também passa por desafios como guerras e maldições — diz Rafaella Machado, da Galera Record, selo que teve um aumento de 158% nas vendas de seus títulos de fantasia no último ano. — Acho que esse crescimento tem muito a ver com os jovens em casa já há um ano, incapazes de viver plenamente as experiências da sua idade, a troca, os ritos de passagem.

Polêmica: Monteiro Lobato ganha versões sem expressões racistas dos originais, e especialistas debatem até onde mexer na obra

Historicamente, períodos de crise fortalecem histórias que nos ajudam a fugir da realidade. Durante a Grande Depressão, por exemplo, Hollywood foi prolífica em comédias e musicais. O curioso é que, segundo Rafaella Machado, o que estava em alta pouco antes do surto de Covid-19 eram títulos de autoajuda direcionados à produtividade — o exato oposto do escapismo.

Outra vantagem da fantasia em tempos de pandemia, segundo a diretora de marketing da Intrínseca, Heloiza Daou, são as sagas que permitem o leitor se lançar em longas aventuras sem pressa para terminá-las. Os cinco volumes do box Percy Jackson somam nada menos do que 1.816 páginas.

— O que mais se viu nessa pandemia foram os empreendimentos literários: o leitor decidiu que agora era a hora de maratonar livros longos ou grandes sagas — diz. — Não à toa os boxes estão vendendo tanto.

O tempo disponível na quarentena trouxe o “foco” necessário para as paulistas Sarah e Sabrina Carvalho, as gêmeas do instagram @surtoliterario , iniciarem sua imersão em universos como o “O Povo do Ar”, da autora Holly Black.

— Agora, podemos viver várias aventuras diferentes todos os dias — dizem as irmãs, de 22 anos. — Inclusive, tem uma frase que diz que um leitor vive mil vidas antes de morrer e a pandemia nos provou isso: vivemos muitas vidas através das páginas.

O heroísmo das personagens dos livros do gênero também acaba servindo como inspiração para enfrentar o momento difícil.

— As notícias sobre a pandemia sempre deixam a gente assustado, mas, se dependesse de alguns personagens de fantasia, a cura da Covid já estava encaminhada por aqui — brinca Bia Souza.