Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Possível parceria entre a Biblioteca Nacional e o Google gera debate sobre preservação de acervos

Gigante americana quer digitalizar livros raros da instituição, mas especialistas recomendam cautela
Biblioteca Nacional digitalizou menos de um quarto do seu acervo de 9 milhões de documentos Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Biblioteca Nacional digitalizou menos de um quarto do seu acervo de 9 milhões de documentos Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO — Uma das dez maiores bibliotecas do mundo e a maior da América Latina, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN) estuda dar um passo ambicioso para levar seu tesouro ao mundo virtual. Desde o início do ano, a instituição vem negociando uma parceria com o gigante Google, nos moldes do que já foi feito com algumas bibliotecas pelo mundo. A empresa americana arca com todos os custos da digitalização de livros raros da coleção, que ficariam disponíveis gratuitamente tanto nos sites da instituição quanto na plataforma Google Livros. Entre os sete milhões de documentos ainda não digitalizados do acervo, estão joias como a Bíblia Poliglota de Antuérpia, de 1569, e um exemplar completo da Encyclopédie Française do século XVIII. Outras obras famosas da casa, como o pergaminho do século XI com manuscritos dos quatro Evangelhos, já ganharam suas versões digitais.

Robert Darnton: "Biblioteca Nacional precisa ser cautelosa com o Google"

Transformar suas relíquias em documentos virtuais e torná-las acessíveis a todos na internet é um dos principais desafios das bibliotecas no século XXI. As dificuldades técnicas e logísticas são imensas, assim como as armadilhas comerciais. Na última década, acordos do Google com outras instituições pelo mundo dividiram especialistas da área, com reclamações sobre a falta de transparência nos contratos. Tanto bibliotecas nacionais europeias quanto a poderosa Biblioteca do Congresso dos EUA rechaçaram aproximações com a empresa.

Exemplar da Bíblia Mongúcia, impressa em 1462, e que faz parte do acervo da BN Foto: Agência O GLOBO
Exemplar da Bíblia Mongúcia, impressa em 1462, e que faz parte do acervo da BN Foto: Agência O GLOBO

Fontes em off dentro da BN revelam que o presidente da casa, Rafael Nogueira, é um entusiasta do projeto (de férias, ele preferiu não dar entrevista). Também comenta-se que uma parte dos funcionários estaria receosa, esperando que se debata internamente as implicações de uma parceria desse tipo. Entre os principais temores, estão questões como o acesso ao material, que poderia deixar de ser gratuito no futuro, limitando pesquisas para o público. Outro ponto-chave é uma discussão mais ampla sobre preservação: afinal, caberia a uma empresa privada o papel de guardiã da memória do país?

— Evidentemente que a participação de uma plataforma do tamanho do Google é tentadora — diz a historiadora Maria Eduarda Marques, diretora-executiva da BN, que na última quarta-feira se reuniu com representantes do Google. — Estamos conversando para analisar a proposta na ótica da otimização da digitalização de nosso acervo, mas também da nossa missão estatutária, que é diferente da ótica de uma biblioteca privada ou universitária. O acervo da Biblioteca Nacional é do povo brasileiro e temos a obrigação de sempre disponibilizá-lo ao mundo.

Caçadores do Rio perdido: Pesquisadores garimpam acervos e fazem descobertas deliciosas

Procurado pelo GLOBO, o Google afirmou que não monetiza as obras digitalizadas pela empresa. Também garante que a biblioteca poderá manter os documentos em seu site, se desejar. E esclareceu que apenas itens em domínio público entrarão no projeto. No passado, o Google enfrentou uma série de processos após convencer bibliotecas a disponibilizar versões digitais de livros protegidos por direitos autorais. Desde a metade dos anos 2000, a empresa vem buscando acervos pelo mundo para enriquecer o Google Livros.

— O conteúdo dos livros gera mais resultados de buscas, o que por sua vez torna o serviço do Google melhor, trazendo mais audiência — explica Ronaldo Lemos , diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).

Cadê aquela live? Pesquisa aponta que 95 por cento de toda produção no mundo em 2020 será jogada fora

As cooperações costumam ser acompanhadas de polêmicas. Em 2009, o acordo com a Biblioteca de Lyon, por exemplo, foi chamado de “pacto faustiano” por seus críticos. Na época, falou-se até em “eugenia documental”, pelo fato de ele contemplar alguns tipos de documentos. Além disso, uma cláusula do contrato proibia que estes arquivos aparecessem em outros motores de busca além do Google. Mas o ponto mais sensível é que ele cedia exclusividade comercial dos documentos à empresa. A mesma minúcia contratual apareceu no convênio com a Biblioteca Britânica, em 2011. Como uma reação ao Google Livros, a União Europeia criou, em 2008, a Europeana, plataforma digital que uniu as bibliotecas do continente com o objetivo de preservar suas relíquias em seus domínios.

— O histórico do Google dá margem a suspeitas — diz o historiador Robert Darnton , que virou diretor da Biblioteca de Harvard logo após a empresa digitalizar o acervo da instituição. — Eu recomendaria aos brasileiros serem extremamente cautelosos com qualquer acordo.

Mesmo se tratando de obras de domínio público, o Google não estaria impedido de, algum dia, cobrar pelo acesso às suas versões digitais.

— É equivalente a cobrar para exibir um filme em domínio público — diz Sérgio Branco, cofundador do ITS Rio. — A cobrança é pelo serviço prestado. O fato de a obra estar em domínio público não significa que seu acesso deve ser gratuito.

Planta do Laboratório de Química da Universidade de Coimba, documento de 1773. Item não digitalizado da coleção da Biblioteca Nacional Foto: Fundação Biblioteca Nacional
Planta do Laboratório de Química da Universidade de Coimba, documento de 1773. Item não digitalizado da coleção da Biblioteca Nacional Foto: Fundação Biblioteca Nacional

Mas a BN, por sua vez, admite que uma parceria com o Google aceleraria o processo de digitalização de seu acervo. Em tempos de quarentena, a s visitas à sua hemeroteca virtual dispararam (46 milhões de acessos entre janeiro e junho deste ano contra 26 milhões em todo o ano de 2020), mas muitos tesouros ainda não podem ser consultados on-line. A instituição digitalizou menos de um quarto de seu acervo de nove milhões de documentos, incluindo livros, mapas e fotos.

Tesouro em disputa: Como os manuscritos de Kafka viraram uma batalha legal entre Israel e herdeiros de Max Brod

Atualmente, a BN conta com uma equipe de 15 especialistas para a tarefa. Escanear uma obra rara exige cuidados. O processo pode durar semanas, desde a higienização até a catalogação do item, passando pela abertura e posição corretas em que o livro é colocado no scanner. Em termos de infraestrutura, a casa tem o melhor scanner da América Latina, porém, ainda assim é insuficiente diante do volume a ser trabalhado, de acordo com Maria Eduarda Marques.

— O Google possui recursos e equipamentos que nenhuma outra biblioteca tem — diz a historiadora. — Mas há toda uma preocupação com o ritmo de produção, que não pode ser industrial. É preciso estar atento, no caso de uma parceria, para que este cuidado seja compatível com o nosso.

Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional Foto: Ana Branco / Agência O GLOBO
Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional Foto: Ana Branco / Agência O GLOBO

Entre os especialistas, há um consenso de que o maior desafio é encontrar espaço seguro para as obras. Sim, armazenamento também é um problema para tesouros digitais. Este ano, hackers invadiram o site da BN e sequestraram temporariamente seus dados, exigindo resgate financeiro; todos os serviços on-line ficaram paralisados por 15 dias. A segurança digital demanda uma atualização contínua de softwares, o que custa caro. A nível nacional, as instituições sofrem com a falta de investimento.

— Sem investimento forte, há um risco muito alto de que parte do que já foi digitalizado pelas bibliotecas do país se perca — diz Rodrigo Mexas, Coordenador do Laboratório de Digitalização de Obras Raras/ICICT/Fiocruz.

O leitor como metáfora: Alberto Manguel volta ao tema da leitura em nova obra

A digitalização é fundamental para países que sofrem com a insuficiência de políticas culturais como o Brasil, acredita Ronaldo Lemos. Segundo ele, as bibliotecas não devem temer as parcerias com grandes empresas internacionais.

— O acervo que permanece no seu suporte físico está permanentemente ameaçado, de roubo, deterioração e incidentes como incêndios e outras tragédias — observa ele. — A digitalização é medida emergencial nesse contexto. Ela é igual à vacina: não dá para escolher. Se o poder público não está cumprindo seu dever, nesse caso é melhor que uma empresa privada ao menos faça todo o trabalho antes do perecimento dos acervos.