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Cultura Livros

Premiado livro de contos mostra jovem vida gay na Porto Alegre dos anos 2010

Obra do estreante autor gaúcho Tobias Carvalho, 'As coisas' chega agora às livrarias apresentando 23 textos
O escritor gaúcho Tobias Carvalho Foto: Divulgação
O escritor gaúcho Tobias Carvalho Foto: Divulgação

O dedo passa no “like” e a sorte está lançada. A maior parte dos personagens de “As coisas”, livro de estreia do escritor gaúcho Tobias Carvalho, usa “aplicativos de pegação” para se conhecer. São jovens gays que ainda não sabem muito sobre a vida, mas que vão direto ao ponto quando se trata de sexo. Nos 23 contos da publicação, recém-chegada às livrarias após vencer o tradicional Prêmio Sesc de Literatura deste ano, o autor gaúcho narra a fugacidade de encontros mediados pelas tecnologias digitais.

Em busca do gozo fácil, os usuários tateiam experiências até o esgotamento: sexo em grupo, sexo com desconhecidos, sexo intenso, sexo desajeitado, na sauna, no carro, com conversa, sem conversa... Às vezes, fica um vazio no coração; em outras, algo para lembrar.

— Esses aplicativos trazem uma facilidade bem libertadora — diz o escritor. — Combina com nossos tempos. Se tanta gente quer transar, por que precisa fingir que não? Por outro lado, as relações se transportaram muito para o virtual, e é claro que isso suprime uma parte do real também: a conquista, o flerte. Essa burocracia que dá trabalho mas por isso é legal. Então acho que de forma geral se facilitam as relações, mas não se constrói uma base que permita que elas perdurem.

Antes que alguém evoque o nosso desgastado Zygmunt Bauman, vale avisar que o livro não faz citações fáceis ao pensador polonês nem à sua “modernidade líquida”. Na verdade, traz relatos bem diretos e autoexplicativos, muitos deles baseados nas vivências do próprio autor, um estudante de Relações Internacionais de 22 anos.

Grindr

Inicialmente, Tobias tentou botar no papel um romance, mas não gostou do resultado. Então, tirou alguns contos mais antigos de sua gaveta e percebeu que 60% do que escrevera giravam em torno dos relacionamentos entre jovens homossexuais de Porto Alegre. Reuniu o que tinha de melhor num mesmo projeto e o inscreveu no Prêmio Sesc, que recompensa romances e coletâneas de contos de autores estreantes. Superou 720 concorrentes em todo o país e, agora, tem o livro publicado por uma grande editora (Record), com tiragem de 2 mil exemplares.

Os personagens de “As coisas” transitam pelas ruas da Porto Alegre natal do autor — cidade que ele aprecia por ser “mezzo grande mezzo pequena”. No livro, a capital gaúcha parece um grande hotel cosmopolita, onde homens de diferentes tribos sociais acabam se chocando. Mas seu universo urbano também pode se revelar pequeno e limitador — “Não tinha nada mais pra se fazer em Porto Alegre” além de transar, conforma-se o entediado narrador do conto “As coisas que a gente faz para gozar”.

Livro 'As coisas', de Tobias Carvalho Foto: Divulgação
Livro 'As coisas', de Tobias Carvalho Foto: Divulgação

Por mais casuais, as experiências do livro não são, necessariamente, desprovidas de sentido. Juntas, resultam numa espécie de romance de formação, em que os jovens descobrem novas perspectivas sobre a vida e as relações humanas. Quase como uma educação sentimental via Grindr (o mais famoso “aplicativo de pegação” gay, onipresente no livro).

— Os contos acabam sendo mais fortes no conjunto do que separadamente — avalia Tobias. — Porque a vida é meio assim, tu vives várias coisas sem saber fazer sentido de nada, mas no fim tu estás mudado. Independentemente da fugacidade, os personagens estão sempre conhecendo gente, e o acúmulo de experiências é o que nos ensina.

Encontros fortuitos, aliás, não são o único assunto da coletânea. Há contos sobre casais que se separam. E também sobre um pai que acha um pênis de borracha em casa (é da mulher, da filha de 15 anos ou do filho?). Em resumo, um painel da vida gay-jovem na Porto Alegre dos anos 2010, com seus afetos, suas dores e... seus perigos. Em “As coisas que a gente faz para gozar”, dois rapazes se encontram para fazer sexo no carro, numa área escondida de um bairro visivelmente conservador. A bateria do veículo morre, e eles temem pedir ajuda aos desconfiados moradores. Algo que dificilmente aconteceria se o casal fosse hétero, acredita o autor.

— Para os gays, é sempre uma outra lente em relação a qualquer situação urbana, mesmo que em um ambiente tranquilo — diz Tobias. — Um casal gay tem o reflexo de parar de dar as mãos quando alguém se aproxima na rua. O sentimento é esse. Nunca se sabe o que vai vir.