Verissimo em sua casa, no Bairro Petrópolis, em Porto Alegre Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Prestes a completar 80 anos, Verissimo mostra sua vida privada

O escritor mais tímido do Brasil mostra sua intimidade em Porto Alegre

Verissimo em sua casa, no Bairro Petrópolis, em Porto Alegre - Leo Martins / Agência O Globo

por Bolívar Torres

PORTO ALEGRE - “Conhece-ti a ti mesmo, mas não fique íntimo”, escreveu, não faz dois anos, Luis Fernando Verissimo. Na segunda-feira, o escritor gaúcho completa oito décadas de convívio consigo mesmo. Sempre introspectivo, recebeu O GLOBO em sua casa no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, onde vive com a mulher, Lucia. O domicílio foi construído pelo pai, Erico, em 1946, e ainda hoje guarda muitas memórias da família.

Num dia de setembro surpreendentemente frio para a época do ano, Verissimo abriu sua vida privada, falou sobre sua nova rotina após os problemas de saúde sobre como lida com a passagem do tempo. Sua mais nova obra, “Ver!ssimas — Frases, reflexões e sacadas sobre quase tudo” (Objetiva), que chega às livrarias na quarta, reúne seus melhores aforismos, uma síntese da sua visão de mundo. O autor, porém, garantiu: não vê os 80 anos como oportunidade para fazer um “resumo” final de nada.

— Nunca fui muito íntimo de mim mesmo, nunca examinei o que eu fiz, o que eu deixo de fazer — disse. — Não vejo o livro como uma recapitulação da minha obra, até porque ainda espero produzir mais alguma coisa.

Abaixo, selecionamos algumas frases presentes no livro, que acabaram norteando a entrevista.

80 anos

“O TEMPO ATACA EM SILÊNCIO. O TEMPO USA ARMAS QUÍMICAS”

Em 2012, Verissimo ficou internado em estado grave em Porto Alegre. De lá para cá, venceu a infecção generalizada e colocou um marcapasso, mas uma lombalgia vem dificultando sua mobilidade. Sua produtividade, no entanto, não foi afetada.

— Uma vez me perguntaram o que eu achava da passagem do tempo, e eu disse: sou contra — lembrou. — Mas, no fim, é o tempo que nos controla.

Em momentos da internação de quatro anos atrás, Verissimo não teve controle sobre os delírios provocados pela infecção. Todavia, acabou dando a eles um pouco de sua criatividade. Do leito, “desvendou” uma complexa trama internacional:

— Achava que o hospital era um entreposto de crianças vietnamitas. O contato era feito com os EUA, os médicos falavam em inglês. Tinha até um Doutor Johnston... E um japonês.

O autor, cujos romances partem de uma investigação — mesmo os não policiais — já avisou em uma crônica que não pretende aproveitar os insights da alucinação em suas futuras publicações.

— Pior que tudo o que vi talvez fosse verdade — brinca.

Nova rotina

Rua das Andradas, ex-Rua da Praia, no Centro de Porto Alegre - Leo Martins / Agência O Globo

“TODA GRANDE CIDADE É AO MESMO TEMPO UMA EXPERIÊNCIA DO IRRACIONAL E UMA LIÇÃO DE CONVÍVIO”

Até pelas limitações físicas, o cronista perdeu o hábito de passear Porto Alegre e ultimamente tem preferido o conforto de casa. Mesmo assim, não deixa de fazer seus programas favoritos: concertos, shows de jazz e filmes.

Sua época preferida é o outono, mas o verão tem um atrativo à parte. É o momento em que muitos porto-alegrenses viajam ao litoral, e a cidade vazia se torna “o melhor balneário do país”, mesmo sem ter mar. Mais um paradoxo daquela que, segundo Verissimo, se situa entre “mal-entendidos”. Vive à beira de um rio (o Guaíba) que não é rio, mas um estuário; tem uma rua principal (Rua da Praia), que não atende mais por esse nome, mas ainda é chamada como tal; e posa de metrópole, apesar do seu aldeanismo:

— É uma cidade paralela, com nomes antigos, que existem só na lembrança das pessoas.

A Porto Alegre de Verissimo

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Amor

“DEPOIS DESSE TEMPO TODO JUNTOS, LUCIA E EU TEMOS SÉRIAS ESPERANÇAS DE QUE O CASAMENTO DÊ CERTO”

Casados desde 1963, Lucia e Luis Fernando vivem uma nova fase da vida conjugal: a síndrome do ninho vazio. Os filhos estão todos fora. Pedro, o mais novo, mora no Rio; Fernanda, a do meio, em São Paulo; e Mariana, a mais velha, continua em Porto Alegre, mas em outra casa.

— Agora, você é obrigado a falar comigo — disse Lucia ao marido, rindo.

Verissimo completou:

— A Lucia tem que acompanhar minhas palestras para saber o que eu penso. Porque, aqui em casa, não consegue...

Lucia é expansiva e sociável, Luis é retraído e minimalista. A incompatibilidade de gênios mantém o relacionamento equilibrado.

— Pois é, vamos ver depois desses 53 anos, se a gente ainda se... — começou Lucia.

— Nos próximos 53 anos a gente se acerta — cortou o marido.

Nostalgia

Vista do bairro Petropólis, onde mora o escritor - Leo Martins / Agência O Globo

“O FUTURO ERA MUITO MELHOR ANTIGAMENTE”

Pela janela de uma das salas, Lucia mostra a vizinhança. A ampla casa da família é hoje uma ilha em meio a um mar de concreto. O escritor lembra que, quando se mudou para lá com os pais (o escritor Erico Verissimo e sua mulher, Mafalda), aos 10 anos, só havia terrenos baldios em volta. O pequeno Luis Fernando jogava bola na rua — algo que nos dias atuais seria praticamente impossível.

— Hoje tem a tal da especulação imobiliária, se constrói onde quer — lamenta o escritor. — Mas Porto Alegre ainda é uma cidade muito arborizada. Temos ipê roxo, ipê amarelo, depois vem a época dos jacarandás. O verde permaneceu, apesar de tudo.

A mudança em Porto Alegre que mais o afetou, no entanto, é outra:

— Antigamente, havia um Centro que era o ponto de reunião das pessoas, a gente ia paquerar as meninas etc. Chamávamos de “fazer o footing”. O Centro hoje são vários shoppings.

Tradições

“EVITE GORDURA SATURADA, NUNCA COMA UMA VACA COM SINAIS DE ESTRESSE”

Carioca criada em Botafogo, Lucia chegou em 1966 a Porto Alegre, nessa mesma casa em que os dois moram hoje. A adaptação foi rápida. Talvez ela se considere mais gaúcha do que o marido.

— Achei que ia chegar numa casa em que tivesse churrasco todo domingo, com os homens indo ao açougue, escolhendo a carne. Que nada! — brinca Lucia. — Quem começou a fazer churrasco aqui fui eu. É uma desmoralização para os homens da família. Mulher e carioca fazendo churrasco numa casa em Porto Alegre!

O criador do Analista de Bagé admite que “não sabe nem botar a carne no espeto”:

— O Rio Grande do Sul tem uma coisa muito discutível, que é essa valorização da tradição. Devo confessar que jamais provei um chimarrão, que jamais andei a cavalo, mas ainda assim acho essa valorização do passado algo interessante.

Referências

“A BOA FRASE TAMBÉM É UMA MANEIRA DE CONVIVER COM O INEXPRIMÍVEL”

O novo livro do autor, “Ver!ssimas”, foi na verdade planejado pelo publicitário Marcelo Dunlop, que desde os dez anos de idade recorta e guarda colunas do escritor. Conhecedor como poucos da obra de LFV, Dunlop selecionou 800 frases de sua obra, incluindo crônicas, quadrinhos e romances.

— Minha tese é que o Verissimo tem uma memória assombrosa, e que, a cada cena que ele observa, brotam em sua mente 17 referências sobre aquilo: literárias, filmes a que assistiu, frases que escutou em 1982, crônicas antigas que leu, e ele fica escrevendo mentalmente sobre o que observou — desmancha-se o publicitário, em entrevista por e-mail.

No mês passado, Verissimo se assustou ao assistir “Café Society”, o último longa de Woody Allen. Um dos quotes mais engraçados do filme — “Viva todos os dias como se fosse o último. Um dia você acerta” — é igual a uma frase de LFV publicada em 2014 em sua coluna do O GLOBO, e que também está em “Ver!ssimas”.

— Acho que o Woody Allen me plagiou — diz o escritor, com um sorriso. — Mas deve ser coincidência...

Trabalho

“ESCREVER É UMA ATIVIDADE QUE COMECEI MEIO POR ACASO, E QUE ESTÁ GARANTINDO O WHISKY DAS CRIANÇAS”

Um dos primeiros trabalhos de Verissimo foi como copy no jornal “Zero Hora”, escrevendo horóscopo. Todo dia acordava e ia ler a previsão que havia escrito para si mesmo. O burburinho das redações o educou a escrever em qualquer lugar do mundo, faça barulho ou silêncio, calor ou frio. Diferentemente de seu pai, que passou por um longo hiato de escrita quando foi morar nos EUA.

Desde seu primeiro livro, “O popular”, de 1973, Verissimo mantém um ritmo alucinante de publicação. De suas cerca de 70 obras publicadas, porém, apenas uma não surgiu originalmente como encomenda, o romance “Os espiões” (Alfaguara, 2009).

— Na verdade, eu cumpro ordens — comentou o autor. — Meus livros sempre são projetos que os outros vão trazendo.

A próxima obra de LFV também é uma encomenda, e deverá chegar às livrarias em outubro. Trata-se do infantil “As gêmeas de Moscou” (Companhia das Letrinhas). Escrever para o público mirim é um desafio:

— Tem que acertar o tom, escrever de uma maneira que as crianças entendam, mas sem ser condescendente.

Transmissão

Verissimo no antigo escritório do pai, Erico, mantido intacto - Leo Martins / Agência O Globo

“NINGUÉM ESCOLHE A FAMÍLIA EM QUE VAI NASCER — OU SEJA, A FORMA DO SEU NARIZ E A SUA HERANÇA”

Verissimo não escolheu ser filho de um dos maiores romancistas do país, mas também nunca renegou a influência do pai. Já disse, inclusive, que a “informalidade” da literatura de Erico (1905-1975) foi referência desde cedo. Acompanhou de perto o processo de escrita da saga “O tempo e o vento”. Hoje, mantém intacto o escritório onde costumava ver o pai corrigir rascunhos de seus livros.

— Ele escrevia em outro cômodo, lá embaixo — recordou. — Batia à máquina rapidamente, não sei se fez algum curso de datilografia. Depois trazia o trabalho aqui para cima e ficava corrigindo. Eu lia o papel assim que era tirado da máquina, quentinho do forno.

O tal cômodo ao qual Verissimo se refere é uma toca no subsolo, que ainda existe. Ele a transformou em seu próprio espaço de trabalho, onde desenha, escreve e guarda livros, discos e lembranças. Como o totó (em Porto Alegre se diz “fla-flu”) no qual enfrentou Elias Figueroa — lendário zagueiro do Inter nos anos 1970, que costumava frequentar sua casa para partidas noturnas.

Futebol

Faixas do Internacional guardadas na "toca" de LFV - Leo Martins / Agência O Globo

“AMAMOS UMA CAMISETA, UM NOME, UM ESCUDO. AMAMOS, NO FIM, UMA ABSTRAÇÃO”

O primeiro super-herói brasileiro de Verissimo foi Tesourinha, antigo ponta-direita do Sport Club Internacional. Mesmo não sendo sócio do colorado de Porto Alegre, o autor é um de seus mais ilustres torcedores. O primeiro jogo que assistiu foi um Gre-Nal em 1946, no Estádio dos Eucaliptos, hoje derrubado para a construção de um condomínio (de novo, a especulação imobiliária). Apesar de já ter visto em campo alguns dos melhores times do mundo, do Real Madrid de Di Stéfano ao Santos de Pelé, foi mesmo o histórico Inter da década de 40, com o astro Tesourinha, que mais o marcou.

Atualmente, Verissimo acompanha o time do coração somente pela TV. O escritor admite que o motivo é “comodismo”, mas não deixa de fazer uma comparação entre a era dos estádios modernos, com suas arenas modernas, e o antigo Eucaliptos, onde se trazia uma almofada para sentar no cimento frio.

— Hoje, você vê uma tomada de [uma transmissão de ] jogo e fica difícil ver um negro na torcida. Até com o Internacional, que antigamente era o clube do povo — analisa. — O futebol brasileiro ficou mais careta. E mais caro.

Jazz

"GOSTO É O QUE MAIS SE DISCUTE"

Verissimo já disse não confiar em nenhum jazzista morto há menos de 25 anos. A frase foi tirada do livro “Conversa sobre o tempo”, de 2010, e precisa ser atualizada: subiu para 31 anos. Mas a convicção é séria, e vai além da boutade . Ele a leva para a vida, apesar de alguns nomes da sua discoteca (como Miles Davis, Chet Baker e Dizzy Gillespie) terem morrido há pouco menos de 30 anos. Ainda assim, só o cativam as fases clássicas:

— Quando Miles Davis começou a usar sandálias, acabou para mim — explicou, referindo-se à fase fusion do trompetista.

Verissimo tocou sax durante anos na banda Jazz 6 — que, por ser um quinteto, nunca fez jus ao nome. Viajar com o grupo e tocar clássicos pelo país eram as atividades preferidas do marido, conta Lucia. Mas os problemas de saúde o afastaram dos shows. A última apresentação foi em 2015. Desde então, não encostou mais no sax, a não ser para uma palinha registrada pelo GLOBO, no vídeo acima.

Futuro

“TEMOS QUE CONFIAR NO AMANHÃ. A NÃO SER QUE DESCUBRAM ALGUMA COISA CONTRA ELE À NOITE”

Para falar do futuro após os 80, Verissimo recorre ao passado, mais especificamente a uma peça de Shakespeare do século XVII, “A tempestade”:

— O que muda com a idade é que a gente perde a perspectiva longa. Tem aquela frase do Shakespeare: “(...) onde cada terceiro pensamento será dedicado à minha sepultura”. Quando você tem 30 anos pensa no que vai fazer nos próximos 30 anos. Após os 80, isso acaba.

Resta o presente do Brasil, também tempestuoso. O autor já afirmou em outras entrevistas que vem recebendo cada vez mais e-mails odiosos, xingando-o por conta de suas opiniões. Nesse clima de radicalismos políticos, qual de seus personagens seria o mais atual?

— A velhinha de Taubaté, a única pessoa que acredita no governo. Quando a criei, ainda era o governo Figueiredo. Mas poderia ser a última pessoa que acredita no PT ou no Temer. Ela poderia ser atualizada, mas, como já morreu, acho que não vai mais aparecer.