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Quem é a escritora Nadifa Mohamed, a primeira somali a concorrer ao Booker Prize

O romance 'O pomar das almas perdidas' já esgotou duas tiragens no Brasil e acaba de ser reeditado; 'Escrever sobre a Somália me permite abordar questões que os mais pobres e vulneráveis enfrentam todos os dias', diz ela
A escritora somali Nadifa Mohamed, autora de "O pomar das almas perdidas" Foto: Divulgação/Sean Seng
A escritora somali Nadifa Mohamed, autora de "O pomar das almas perdidas" Foto: Divulgação/Sean Seng

A escritora somali-britânica Nadifa Mohamed se surpreende com o relativo sucesso de seus livros no Brasil, país tão distante, geográfica e culturalmente, da Somália onde ela nasceu, em 1981. “O pomar das almas perdidas”, romance que se passa às vésperas da Guerra Civil, já esgotou duas tiragens de 5 mil exemplares (número excelente para o mercado editorial brasileiro) e ganhou uma nova edição no final do ano passado. “Menino Mamba-negra”, seu romance de estreia, inspirado na vida de seu pai marinheiro, foi enviado a 30 mil sócios do clube de assinatura TAG — Experiências Literárias, e chega às livrarias em abril, em edição da Tordesilhas. A editora também promete publicar “The Fortune Men”, romance mais recente da autora, que concorreu ao Booker Prize, o mais prestigioso prêmio da literatura em língua inglesa. Nadifa, que às vezes troca mensagens com leitores brasileiros nas redes sociais, veio ao Rio em 2016 e participou da Festa Literária das Periferias (Flup), realizada na Cidade de Deus.

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— Foi um dos festivais literários mais jovens, animados e alegres de que participei. Todo mundo levava os livros e a criatividade muito a sério. Depois que eu fui embora, foi muito triste receber a notícia de que uma operação policial matou vários jovens ali. Quando estive lá, me senti muito segura. Não me pareceu tão diferente da região Londres onde eu cresci — diz ela, a primeira escritora somali a disputar o Booker Prize.

Nadifa chegou ao Reino Unido aos 4 anos de idade. Era para ser uma viagem curta, mas a escalada dos conflitos na Somália adiou indefinidamente o retorno da família. Em meados dos anos 1980, a ditadura somali intensificou os ataques à oposição armada e chegou a bombardear cidades no noroeste do país, como Hargeisa, onde Nadifa nasceu. A ditadura caiu em 1991 e o país sucumbiu à guerra civil, em curso até hoje. Em Londres, a família de Nadifa perdeu contato com os parentes na Somália. Por anos, eles só conseguiam se comunicar por meio de fitas cassete enviadas ao Reino Unido. Os parentes telefonavam nas raras ocasiões em que encontravam um telefone que ainda funcionava. A maior preocupação era com a avó, que estava acamada durante os bombardeios de Hargeisa e não conseguiu fugir, mas depois foi resgatada por uma sobrinha.

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A avó inspirou uma das personagens de “O pomar das almas perdidas”, Kawsar, uma senhora rica que quebrou os ossos da bacia após ser espancada por uma soldado. Presa à cama, ela não consegue escapar quando as bombas começam a cair sobre Hargeisa. “O pomar das almas perdidas” é protagonizado por três mulheres: Kawsar, Filsan e Deqo. As três se encontram logo no início do livro, em uma manifestação convocada pelo governo em um estádio. Deqo, uma menina nascida em um campo de refugiados deveria dançar para os generais que mandavam no país, mas erra na coreografia e apanha de Filsan, uma soldado pragmática. Kawsar tenta defender a menina, mas acaba presa e espancada por Filsan. As três só se reencontram ao final do livro, quando os conflitos entre o governo e grupos rebeldes se intensificam. Entre um encontro e outro, Kawsar passa meses acamada, Filsan reprime cruelmente os adversários do regime e Deqo é acolhida por prostitutas com apelidos inusitados (China, Stálin e Karl Marx).

“Escrever sobre a Somália me permite abordar questões que os mais pobres e vulneráveis enfrentam todos os dias: qual o sentido de tudo isso?”

Nadifa Mohamed
escritora

Nadifa conta leitores de lugares tão diferentes da Somália quanto a Índia, a Colômbia e as ex-repúblicas comunistas do Leste Europeu, costumam lhe dizer que a leitura de “O pomar as almas perdidas” lhes ajudou a entender melhor as ditaduras e os conflitos civis que seus países atravessaram. Um leitor chegou a comparar lhe disse que, lendo o livro, não conseguia parar de pensar na Guerra Civil Finlandesa, que ocorreu em 1918. A autora conhece pessoas que continuam atormentadas por decisões tomadas durante a guerra na Somália.

— Escrever sobre a Somália me permite abordar questões que os mais pobres e vulneráveis enfrentam todos os dias: qual o sentido de tudo isso? Como resistir às autoridades? Como distinguir o certo do errado? —  explica ela, que escreve seus livros “com raiva”. — Quem leva uma vida confortável no Ocidente talvez nem pense sobre isso, mas em vários lugares do mundo, mas pessoas têm que responder essas perguntas todos os dias.

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“The Fortune Men”, o último romance de Nadifa, é inspirado na vida de Mahmood Hussein Mattan, imigrante somali muçulmano acusado injustamente de matar uma agiota em Cardiff, no País de Gales, em 1952. Mattan foi condenado à forca. O pai de Nadifa o conheceu em seus tempos de marinheiro.

— Mattan odiava a polícia. Ele chamava os policiais de mentirosos e racistas na cara deles. Quem fazia isso em 1952? Ele era um rebelde, queria derrubar o sistema, mas não conseguiu e talvez tenha algo a nos ensinar. Porque o que aconteceu com ele se repete ainda hoje, seja com imigrantes somalis muçulmanos no Reino Unido, seja com meninos negros cristãos no Brasil — diz a autora, que também é muçulmana.

Nadifa já está trabalhando em um novo romance, que aborda os conflitos entre gerações de imigrantes somalis no Reino Unido pós-Brexit.

— A história dos somalis que se refugiaram da guerra aqui ainda está para ser contada. Há um conflito entre nós e nossos pais. Eles querem que sejamos bem-sucedidos e que sejamos iguais a eles culturalmente e que nos integremos à sociedade britânica. Isso é impossível! E fica ainda mais difícil à medida que o Reino Unido se torna um lugar mais hostil aos imigrantes. É assustador. São tempos terríveis — diz.

“O pomar das almas perdidas”

Autora: Nadifa Mohamed. T radução : Otacílio Nunes. Editora: Tordesilhas. Páginas: 296. Preço: R$ 49.