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Quem é Édouard Glissant, o filósofo da 'crioulização' que inspirou a Bienal de São Paulo

Escritor caribenho, que desconstrói noção de identidades fixas e destaca mestiçagens, ganha força no país com publicação de 'Poética da Relação'
O filósofo e escritor franco-caribenho Édouard Glissant, autor de 'A poética da Relação' e um dos inspiradores da Bienal de São Paulo Foto: Divulgação
O filósofo e escritor franco-caribenho Édouard Glissant, autor de 'A poética da Relação' e um dos inspiradores da Bienal de São Paulo Foto: Divulgação

Nascido na Martinica, ilha franco-caribenha, o escritor e filósofo Édouard Glissant (1928-2011) descobriu o Brasil em 1944, num verso do poeta Aimé Césaire (1913-2008), seu conterrâneo: “O açúcar da palavra Brasil no fundo do manguezal”. “Fiquei convencido da relação subterrânea que o texto assinalava entre o ritmo africano e o sabor brasileiro”, escreveu Glissant, em 1996, a Diva Barbaro Damato, professora da USP. Na carta, exposta na 34ª Bienal de São Paulo, em diálogo com textos do escritor francês Antonin Artaud (1896-1848), ele cita um de seus conceitos mais importantes, a “crioulização”, definida, em outro texto, como “a mestiçagem acrescida de uma mais-valia que é a imprevisibilidade”. “É essa crioulização que, para além das mestiçagens, trabalha a matéria do mundo e se realiza nesse Brasil emblemático”.

Glissant deixou oito romances, nove livros de poemas, 14 de ensaios e uma peça. Até este ano, só três livros do autor haviam sido publicados no país: “Introdução a uma poética da diversidade” e “O pensamento do tremor”, ambos pela editora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e o romance "O quarto século", lançado, em 1986,  pela Guanabara, em tradução de Cleone Augusto Rodrigues. Contudo, a presença dele por aqui tem crescido. A Bazar do Tempo acaba de publicar “Poética da Relação” e, para o ano que vem, promete “O discurso antilhano”. Além disso, as ideias do autor inspiraram a Bienal de São Paulo , em cartaz até domingo.

— Para Glissant, as artes e a literatura têm uma função essencial na propulsão do imaginário utópico dos povos e das chamadas minorias. Do contrário, eles correm o risco de não se nomear, de calar suas reivindicações, identidade e projeto coletivo — explica Enilce do Carmo Albergaria Rocha, professora da UFJF.

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Glissant estudou filosofia e etnografia em Paris e, em 1958, venceu o Prêmio Renaudot com o romance “La Lézarde”. Em 1960, assinou manifesto em apoio à independência da Argélia. Na adolescência, havia militado pela emancipação da Martinica, até hoje um departamento francês. Pensador da diversidade, interessou-se pelas culturas crioulas da “Neo-América”, regiões do continente que se estendem do Sul dos EUA ao Brasil, onde imperou a escravidão.

No ensaio “Crioulizações no Caribe e nas Américas”, o escritor define o processo, marcado por conflitos, no qual culturas diversas se imbricam e se confundem “para dar nascimento a algo absolutamente novo, a realidade crioula”.

— Glissant demonstra que, em períodos de tensionamento, como o do escravismo, as culturas se esbarram e se questionam, possibilitando a criação de sentidos novos e imprevistos — diz o poeta Edimilson de Almeida Pereira, que assina o prefácio de “Poética da Relação” com Ana Kiffer. — O autor que desconstrói a noção de identidades fixas e unitárias ao pensá-las como relações abertas que valorizam a diferença e a multiplicidade.

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Não é à toa que Glissant apaixone o mundo das artes. Em 1999, assinou texto no catálogo da exposição “Magicien de la terre” que apresentou artistas do Sul Global ao público parisiense. O pensamento do autor inspirou a edição 2002 da tradicional Documenta alemã e duas mostras em Miami. Segundo o curador Jacopo Crivelli Visconti, um dos conceitos glissantianos que guiou a Bienal foi a “opacidade”.

— Glissant indica a impossibilidade de compreender integralmente o outro. É um conceito instigante para se pensar uma exposição de arte que junta obras que se referem diretamente a episódios históricos e outras mais abstratas e poéticas — diz

Escritora e professora da PUC-Rio, Ana Kiffer explica que o conceito de “Relação” questiona a divisão e a hierarquia, propostas pelo pensamento ocidental, entre um “eu” e um “outro” não civilizado. Para Glissant, a relação com o outro é anterior à constituição do eu. Para ela, a conceito de “Relação” tem muito a ensinar aos brasileiros.

— É importante ler Glissant neste momento de retração do Brasil, em que precisamos reivindicar nossa posição no Todo-Mundo, que é como o autor pensa a globalização que se dá sem expropriação de cultura. Podemos pensar como a Relação pode nos ajudar a lidar com o desafio da pluralidade — explica Kiffer, que idealizou o diálogo de Glissant e Artaud na Bienal.