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Quem é Liudmila Ulítskaia, a escritora russa cotada para ganhar o Nobel de Literatura

Autora de 'Meninas' escreve com sutileza sobre o passado soviético e diz que não faz oposição só a Putin: 'Não gosto do Estado que se assenhora da vida do homem e lhe dita as regras'
A escritora russa Liudmila Ulítskaia Foto: JOEL SAGET / AFP
A escritora russa Liudmila Ulítskaia Foto: JOEL SAGET / AFP

A escritora russa Liudmila Ulítskaia anda de mau humor. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, ela não deu detalhes sobre seus aborrecimentos, mas disse que talvez se anime um pouco se ganhar o Nobel de Literatura amanhã. Nos últimos tempos, o nome de Ulítskaia vem aparecendo no topo das listas de apostas para o prêmio. No ano passado, ela chegou à véspera do Nobel na segunda posição , de acordo com o levantamento do Nicer Odds, site britânico que reúne dados de casas de apostas. O prêmio, no entanto, foi para a americana Louise Glück , que estava na 25ª posição. Na tarde desta terça-feira (5), ela ocupava o terceiro lugar, atrás do romeno Mircea Cartarescu e do japonês Haruki Murakami .

— Os prêmios literários são muito importantes para os escritores jovens: eles abrem portas para um público leitor. Na minha idade, isso não importa tanto. Já tenho um público leitor muito vasto. Meus livros foram traduzidos para quase 50 idiomas, ontem mesmo me trouxeram um calhamaço traduzido para o esperanto! E eu não conheço uma pessoa que saiba ler esperanto, com exceção daquela que me trouxe o livro — conta Ulítskaia. — Acredito que nenhum prêmio, nem mesmo o Nobel, seria capaz de mudar a minha vida. Mas devo confessar que nos últimos dias ando tão de mau humor que a notícia de um Nobel talvez me alegrasse um pouco. Por alguns dias ao menos...

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Ulítskaia tem 78 anos, é autora de mais de 20 títulos e, com exceção do conto “Gúlia”, incluído da “Antologia do humor russo”, de 2019, permaneceu inédita no Brasil até o mês passado, quando a Editora 34 enviou às livrarias o livro de contos “Meninas”. Os seis contos são ambientados em Moscou, um pouco antes ou um pouco depois da morte de Josef Stálin, em 1953. As protagonistas são meninas de 9 a 11 anos; Lília, que gosta das histórias bíblicas contadas pelo bisavô e enfrenta agressões antissemitas na escola; as gêmeas Viktória e Gayané, em pé de guerra como Esaú e Jacó; um grupo de escoteiras no encalço de uma mulher sem braço que bordou um retrato de Stálin com os pés.

Os contos de “Meninas” apareceram primeiro em “Parentes pobres”, livro de estreia de Ulítskaia aos 50 anos, publicado em 1993. Nos contos, ela inclui episódios de sua própria infância. Seu avô, como o bisavô de Lília, era um estudioso da Torá. Embora reivindique sua herança judaica, Ulítskaia se converteu ao cristianismo ortodoxo depois de adulta e hoje prefere “livros sobre antropologia cultural a obras dos pais da Igreja”.

O terror stalinista aparece nas frestas dos contos de “Meninas”. Viktória rasga uma carta em pedacinhos e joga-os na privada porque “a desconfiança no balde de lixo pairava sobre aquela época infame”. A avó de Lília temia que a menina falasse das práticas religiosas da família na escola. Quando Emma Achótovna questiona uma das netas sobre o sumiço da outra, o narrador esclarece que os métodos de interrogação “então na moda” eram “absolutamente inadmissíveis” para ela. O passado soviético, em especial as décadas que se seguiram à morte de Stálin, aparece com frequência na obra de Ulítskaia. No entanto, as referências à ditadura comunista são sempre sutis, como se os narradores tentassem driblar a censura vermelha.

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No ano que vem, a Editora 34 publica “A tenda verde”, romance de formação geracional que se estende do fim do período stalinista aos anos 1970. Também em 2022, a Estação Liberdade lança “A escada de Jacó”, saga familiar que se passa entre Kiev e Moscou, de 1911 a 2011.

— As lições do tempo passado são analisadas de forma direta pelos sociólogos e psicólogos. Minha profissão é a literatura de ficção. Quanto à época pela qual me sinto atraída, trata-se sempre do tempo passado. A matéria desse tempo é o medo — afirma. — As referências, sutilezas e alusões são completamente naturais para qualquer escritor. Afinal, trabalhamos com a pena, não com o machado! Falar de forma direta é incumbência de jornalistas e sociólogos.

Escrita e censura

Autor de “Como ler os russos” (Todavia) e tradutor de “Meninas”, Irineu Franco Perpetuo explica que Ulítskaia pertence a uma geração de intelectuais que, por não aderir à cartilha soviética, passou anos escrevendo para a gaveta antes de conseguir publicar. São nomes como Liudmila Petruchévskaia , escritora nascida em 1938 que também recupera as memórias do comunismo e só lançou seu primeiro livro em 1987, na distensão dos anos Gorbachev.

— Ulítskaia é parte da tradição russa de escritores não conformistas. Seus livros abordam temas que eram tabus na União Soviética, como sexo, desigualdade social e preconceito que sofriam os povos não russos, como armênios e judeus — diz o tradutor. — Ela não é uma pregadora como Dostoiévski ou ( Alexander) Soljenítsin (autor de “O arquipélago”, que denunciou os gulags stalinistas) . Se pensarmos na grande tradição russa do século XIX, ela está mais próxima da sutileza e da elegância de (Ivan) Turguêniev (autor de “Pais e filhos”) .

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Ulítskaia não é “grande admiradora de Dostoiévski”. Prefere Púchkin e Tolstói . Na política, ela está mais próxima de Óssip Mandelstam , poeta inimigo de Stálin morto num campo de prisioneiros na Sibéria, que afirmou que “o Estado é algo tão repulsivo quanto as mãos de um barbeiro”. Seus dois avôs chegaram a ser presos durante o stalinismo. Já, nos anos 1970, Ulítskaia, que é geneticista de formação, perdeu o emprego no Instituto Nikolai Vavílov por ajudar a distribuir publicações clandestinas. Ela se refugiou no Teatro Judaico de Música de Câmara e começou a escrever artigos, resenhas, roteiros e seus primeiros contos.

Com frequência, Ulístkaia participa de protestos contra o autoritarismo do presidente russo Vladimir Putin. Um de seus romances, “Daniel Stein, tradutor”, que aborda a relação do cristianismo com o Holocausto, foi condenado pela Igreja Ortodoxa Russa, aliada de Putin. Em 2014, um título infantil da escritora Vera Timenchik editado por Ulítskaia foi investigado pelas autoridades por suspostamente fazer propaganda da homossexualidade, o que é crime na Rússia. O livro retratava diferentes tipos de famílias e dedicava o total de 11 linhas a arranjos homoafetivos. Timenchik foi interrogada diversas vezes, e Ulítskaia denunciou a tentativa de censura publicamente.

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Ulítskaia recorda que o conflito entre escritores e o Estado russo remonda ao reinado de Ivan, o Terrível, no século XVI, e explica que não faz oposição “exclusivamente ao regime de Putin”.

— Não gosto do Estado que se assenhora da vida do homem e lhe dita as regras. O que determina a existência de um cidadão são as leis, e estas eu reconheço. O que acontece na Rússia é que o Estado nem sempre está em concordância com a lei. O Estado deve obedecer às leis, e não mudá-las em proveito próprio.

Capa de "Meninas", livro de contos da escritora russa Liudmila Ulítskaia publicado pela Editora 34 Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Meninas", livro de contos da escritora russa Liudmila Ulítskaia publicado pela Editora 34 Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Meninas”

Autora: Liudmila Ulítskaia. Tradução e notas: Irineu Franco Perpetuo. Editora: 34. Páginas: 168. Preço: R$ 49.