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‘Raízes do Brasil’ ganha edição que faz arqueologia das versões do texto

Ensaio clássico de Sérgio Buarque de Holanda completa 80 anos como best-seller
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor do ensaio clássico "Raízes do Brasil" Foto: Divulgação
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor do ensaio clássico "Raízes do Brasil" Foto: Divulgação

RIO - Se “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, é um “clássico de nascença”, na definição do crítico Antonio Candido, então o seu “parto” durou mais de três décadas. Da primeira edição, lançada em 1936, à quinta, publicada em 1969 e a última revisada pelo autor, diversas modificações foram feitas no texto. Mais de 200 parágrafos foram alterados, notas de rodapé foram suprimidas. No ano em que a obra completa oito décadas, a nova edição crítica de “Raízes do Brasil” traz, pela primeira vez, a indicação de todas as mudanças no mesmo livro, acompanhada de nove posfácios inéditos. O lançamento abre as comemorações dos 30 anos da Companhia das Letras.

O cotejo das cinco versões do texto de Holanda durou três anos. A tarefa ficou a cargo dos doutorandos Mauricio Acuña e Marcelo Diego, coordenados pelos seus respectivos orientadores, Lilia Moritz Schwarcz, professora titular de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), e Pedro Meira Monteiro, professor titular de Literatura Brasileira na Universidade Princeton, nos Estados Unidos. Lilia também é professora visitante na instituição americana, e a ideia da edição surgiu a partir de uma demanda dos próprios pesquisadores da área. Os quatro participarão de debates hoje, em Porto Alegre, e na segunda-feira em São Paulo, às 19h, no Teatro Eva Herz.

Lilia afirma que as mudanças mais significativas ocorreram entre a primeira e a segunda edição, de 1948. A maior parte de “Raízes do Brasil” foi escrita no início dos anos 1930, no período em que o historiador trabalhou e estudou na Alemanha. Na época, havia no mundo uma profunda desconfiança da democracia representativa liberal, da esquerda à direita. Essas ideias estão refletidas na primeira edição. Contudo, 12 anos depois, após a Segunda Guerra e a exposição dos crimes do nazifascismo, o historiador fez uma verdadeira “limpeza” no texto. Uma das notas excluídas é uma crítica do filósofo alemão Carl Schmitt ao sistema parlamentar. O pensamento de Schmitt ficaria associado ao nazismo no pós-guerra.

— Ele faz uma varredura do texto, retira variantes textuais muito fortes, limpa qualquer associação com o pensamento totalitário. Seja nos vocábulos, nas notas teóricas, nos títulos dos capítulos ou no texto principal. É uma operação de varredura. Eu conhecia os trechos, mas não o conjunto das mudanças. E o conjunto fala muito — conta a professora. — É um texto que vai dialogando com o seu contexto. Não é uma operação de falseamento, mas de muita coragem. O mundo muda, e o Sérgio muda junto.

Durante o trabalho, Lilia e Meira Monteiro descobriram uma pérola: um exemplar da edição de 1936 todo anotado pelo autor, com folhas datilografadas coladas e parágrafos inteiros rabiscados. Esse foi o livro entregue por Holanda para a editora José Olympio com as indicações das mudanças que deveriam ser feitas para a segunda edição. A própria existência do exemplar era desconhecida. A obra pertence a um bibliófilo, Carlos Marigo Filho, que autorizou a reprodução das páginas.

— A descoberta foi um acaso. Conversando com um amigo que é curador em São Paulo, ele comentou sobre um bibliófilo que teria essa edição. Fiquei muito cético. Ninguém nunca soube que esse exemplar existia — diz Meira Monteiro. — É absolutamente impressionante a ansiedade do Sérgio diante do texto original. É um verdadeiro trabalho de recorte e colagem, para incluir as páginas datilografadas.

“HOMEM CORDIAL”

Nas suas mudanças, Holanda também busca esclarecer pontos que provocaram desconfiança logo após o lançamento. A principal delas, até hoje bastante controvertida e mal compreendida, é a sua noção do “homem cordial”. Na leitura feita por Cassiano Ricardo, na década de 1930, a cordialidade foi confundida com uma suposta bondade do brasileiro, mas não era a isso que o historiador se referia. Assim como outros ensaístas do período que se dedicaram a produzir interpretações do Brasil, Holanda buscava compreender a prevalência da pessoalidade nas relações sociais no país. No entanto, o que o autor via como positivo em 1936 ganha um aspecto negativo em 1948, destaca Luiz Feldman, autor do recém-lançado “Clássico por amadurecimento” (Topbooks) e de um dos posfácios da nova edição de “Raízes do Brasil”.

— O homem cordial é aquele que tem um desejo irreprimível de estabelecer intimidade com os seus pares. De um lado, isso é bom por gerar certa fraternidade. De outro, é ruim, pois inviabiliza a criação de um espaço público em que normas impessoais prevaleçam sobre emoções privadas — explica Feldman. — A ambiguidade entre essas duas dimensões sempre esteve no livro, mas, a partir da segunda edição, o tom crítico à tradição ibérica e cordial passa a predominar.

No caso de um texto com tantas versões, o prefácio de Antonio Candido, publicado na edição de 1969, acabou oferecendo uma leitura estável do ensaio. É Candido que identifica uma radicalidade democrática no livro, ausente, entretanto, da sua primeira edição.

— O Candido é muitas vezes visto como o inventor de “Raízes do Brasil” por ter selado determinada leitura. É como se o livro radical que ele vê fosse o livro que o Sérgio gostaria de ter escrito — diz Monteiro. — Lilia e eu acreditamos que essa nova edição possa publicizar as camadas dessa obra.

O octagenário “Raízes do Brasil” é um improvável best-seller que já vendeu mais de 250 mil exemplares nos últimos 20 anos. O professor de Princeton atribui o sucesso à ambiguidade da sua resposta ao desafio da civilização brasileira. A cordialidade que nos humaniza é também a que inviabiliza a divisão clara entre o público e o privado. A busca da síntese é uma aventura ainda em aberto.

"RAÍZES DO BRASIL"

Autor: Sérgio Buarque de Holanda

Editora: Companhia das Letra

Páginas: 520

Preço: R$ 94,90