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Reedição de 'Dia de garimpo' resgata Julieta Barbara, poeta esquecida do modernismo

Autora, que foi casada com Oswald de Andrade, une lirismo entranhado na natureza e nas paisagens brasileiras com verso rápido, simples e concreto
Retrato da poeta Julieta Barbara feito por Flávio de Carvalho, em 1939 Foto: Reprodução
Retrato da poeta Julieta Barbara feito por Flávio de Carvalho, em 1939 Foto: Reprodução

Uma das críticas que em geral se faz ao modernismo brasileiro, em especial ao período da Semana de Arte Moderna, diz respeito à ausência de escritoras no movimento. Embora as pinturas de Anita Malfatti tenham ocupado o centro da exposição e das polêmicas ao longo da Semana de 22 — destaque dado também, em menor medida, a outras duas artistas, a pianista Guiomar Novaes e a bailarina Yvonne Daumerie —, a literatura era produzida por um bando de varões que chegaram a encher o palco do Theatro Municipal de São Paulo em uma das noites de recitais há cem anos.

Como se sabe, ao longo dos anos 1920, Tarsila do Amaral passou a ser uma das estrelas do movimento, e outras mulheres chegaram a ressoar, dentro do modernismo, ecos de um feminismo renovador que, cada vez mais, encontrava respaldo em diversos setores da sociedade.

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Nos anos seguintes, Pagu buscou justamente conjugar o debate feminista com a inovação estética, além do engajamento proletário. Deu no romance “Parque industrial”, de 1933. E, ainda no final da década de 1910, a jovem Maria de Lourdes Castro — conhecida como Daisy ou Miss Ciclone nas páginas do “Perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, de Oswald de Andrade — foi uma promessa literária interrompida por uma morte estúpida (complicações de um aborto) que poderia ser explicada também nos termos de uma sociedade machista.

Em suma, não era pouco, levando em conta ainda que, em várias obras modernistas, com maior ou menor empenho, o papel da mulher na história vai sendo posto em debate — e o seu grau de modernidade passa a ser medido também pela inclusão delas em posições antes reservadas aos homens, como a própria arte, então uma das mais masculinas das atividades. Seja como for, não é fácil lembrar de uma obra literária modernista — sobretudo no “período heroico” — escrita por uma autora brasileira.

De maneira que a recente reedição de “Dia garimpo”, da poeta Julieta Barbara, publicado em 1939, ainda que tardiamente, só por isso já é bem-vinda. Tardiamente em mais de um sentido: na data original de publicação, os poemas da autora, na esteira dos projetos de Oswald e Raul Bopp, já pareciam deslocados em relação à linha evolutiva da poesia brasileira. E os modernistas estavam em baixa no período. Por isso, entre outros motivos, a estreia da jovem poeta — com 30 anos à época — não chegou a ser motivo de grande celebração por parte da crítica, conforme analisa no posfácio do volume Mariano Marovatto, responsável também por localizar inéditos que entraram na presente edição.

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Trata-se de uma publicação tardia, em outro sentido, porque não há justificativa para que o livro tenha ficado tanto tempo esquecido, apesar dos desenganos da historiografia literária. Em carta de Bopp para a autora, que serviu como apresentação do livro, o poeta atesta uma “poesia forte”, feita com “ternura religiosa” e “mistura de vozes”.

Entre essa mistura de vozes, ouve-se nos poemas de Julieta Barbara também a voz do próprio autor de “Cobra Norato”, talvez sua principal influência. Seja no lirismo inocente entranhado na natureza e nas paisagens brasileiras, que possuem vida própria, seja no contorno às vezes mágico das imagens, ou no tom narrativo dos versos e na temática popular, Bopp e Barbara têm muito em comum.

Verso rápido e concreto

A presença de Oswald de Andrade é ainda mais visível — mas talvez menos profunda — e se espalha por todo o livro, da dedicatória à epígrafe de um dos poemas (“Poesia”, a peça mais fraca do livro), e também em certos temas e técnicas da escrita — no verso rápido, simples e concreto, nas marcas de oralidade, nos diálogos e na montagem, como se lê no bom poema que abre o volume: “Dia garimpo/ Vestido limpo/ Na água sabão/ O azul caipira/ Do céu burleta/ Levando o sol/ Gosto de Alzira (...)”. Não é para menos: além da influência da poesia oswaldiana no modernismo, o poeta foi casado com Julieta Barbara ao longo do período de redação deste “Dia garimpo”, quando viveram um curto período no Rio de Janeiro, em um apartamento de frente para o mar, na Avenida Atlântica.

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A paisagem carioca, aliás, é introduzida nos versos da poeta nascida em Piracicaba, interior de São Paulo. Mas há muitas outras paisagens em “Dia garimpo”, que apresenta um Brasil diverso e popular. Soma-se a isso a grande diversidade de ambientes que os poemas exploram, do teatro ao botequim, da feira de rua às festas religiosas. Nesse sentido, pode-se dizer que a poesia de Julieta Barbara aprofunda a pesquisa que a estética modernista realiza da cultura oral e popular —notável ainda na maneira como ela reproduz em diversos poemas a forma dos cantos e dos refrãos, fazendo com que algumas peças se pareçam com espécies de ladainhas.

Além dos poemas, acompanha o volume uma série de ilustrações da própria escritora que lembram muito os desenhos de Tarsila, e que também reitera o forte e criativo diálogo da literatura modernista com as artes visuais construído desde os primeiros livros de Oswald. Se Julieta Barbara não chegou a escrever — e desenhar — outros livros depois, apenas poemas esparsos, a reedição oportuna de “Dia garimpo” confere à poeta — e aos leitores —uma segunda oportunidade.

Victor da Rosa é crítico e professor de literatura brasileira da Universidade Federal de Ouro Preto

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"Dia garimpo"Autora: Julieta Barbara. Editora: Círculo de Poemas. Páginas: 112. Preço: R$ 64,90. Cotação: bom.