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Reedição de 'Vida vertiginosa' mostra um João do Rio moderno antes dos modernistas

Cronista, cuja morte completa 100 anos, foi inovador na forma e no conteúdo ao retratar a ebulição na cidade nos anos 1910
O cronista João do Rio Foto: Divulgação/Fundação Biblioteca Nacional
O cronista João do Rio Foto: Divulgação/Fundação Biblioteca Nacional

RIO —  Em 1912, ano em que “Vida vertiginosa” ganhou sua primeira edição, o Rio sofria uma ebulição. O processo de modernização da cidade durante a Belle Époque é o que mais chama a atenção nas 25 crônicas do livro de Paulo Barreto, vulgo João do Rio . O cronista retrata a “era do automóvel”, em que a “velocidade extraurbana” dita o ritmo do cotidiano, e em que “a vida nervosa e febril traz transformações súbitas nos hábitos” da população.

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Reeditada agora pela José Olympio, no ano do centenário de morte do jornalista , e a apenas seis meses dos cem anos da Semana de 22, a obra mostra que João do Rio foi, a seu modo, uma espécie de modernista antes dos modernistas. Embora nunca tenha feito parte do movimento, o cronista estava vivendo e retratando a modernidade, e até antecipando questões que os paulistas só iriam começar a pautar uma década depois.

— Hoje, nas universidades, já se tem o entendimento de que o que se passa no Rio naquela época é a modernidade — diz Giovanna Dealtry, pesquisadora e professora do Instituto de Letras da Uerj, que fez a preparação, as notas e a introdução da nova edição. — Não é um movimento de grupos, são autores modernos que se preocupam com o cotidiano das ruas. O João do Rio é esse repórter flaneur, que vivencia a cidade sem ter uma visão de torre de marfim. Ele sobe a favela, escreve sobre as máquinas, os automóveis, olha para as transformações... Esse gesto de estar nas ruas, de conversar com as pessoas de diversas classes sociais, é um gesto da modernidade.

Enterro de João do Rio no cemitério São João Batista Foto: O Globo / Acervo
Enterro de João do Rio no cemitério São João Batista Foto: O Globo / Acervo

Como lembra Dealtry em seu prefácio, João do Rio cria uma linguagem baseada nesse novo ritmo urbano, que faz uma fusão entre o indivíduo e a máquina (o Automóvel é nomeado pelo autor em maiúscula, como se fosse uma entidade). Abusando das sínteses, ele elimina conectivos e termos de conclusão, antes que os modernistas o fizessem de forma programática, nota a pesquisadora.

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Com diálogos dinâmicos e uma prosa que por vezes parece acelerar como um automóvel, seus textos causaram certa perplexidade nos seus colegas mais velhos do período, como Coelho Neto (aquele mesmo que se tornaria uma espécie de nêmesis dos modernistas). Homem de outra época, que ficara no passado, o romancista maranhense até confessou sua dificuldade em ler a prosa de João do Rio. Ao noticiar o lançamento do livro, um redator anônimo do Jornal do Commércio resumiu: “Enfim, o Rio de hoje. Quem melhor o pintaria do que João do Rio?”

“Vida vertiginosa” sintetiza a visão ora cética ora encantada do cronista sobre a modernidade. Na crônica “Cabotino”, ele a coloca na boca de um político, que num diálogo com um jornalista comenta: “O homem moderno não tem nem pessimismo nem otimismo, porque não tem alma. O homem moderno trata da sua vida, vê se não perde a ocasião de apanhar o seu, o que é sempre o dos outros, livre e desembaraçadamente.”

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Na crônica “Modern girls”, um observador pessimista testemunha o desfile fútil dos privilegiados em uma confeitaria, que nos lembra que a modernidade é, muitas vezes, um fim em si. Moças púberes mostram seu apetite por luxo e reproduzem desde cedo o cinismo social.

Paralelamente à nova cidade que surge, o cronista vai buscar aquela que morre. Em “O último burro” narra a derradeira viagem do último bonde puxado por burros do Rio. “O fim de um símbolo” retrata a decadência da arte do Guignol (o teatro de marionetes francês), entrevistando um de seus últimos expoentes. Já “O dia de um homem em 1920” imagina como seria a vida na cidade dali a dez anos, com suas novas invenções tecnológicas.

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Já uma figura reconhecida quando “Vida vertiginosa” saiu, João do Rio nunca teve medo, ao longo de sua carreira, de expor um olhar crítico das transformações. Se por um lado ele mostrou a rápida assimilação aos novos costumes (o cinematógrafo, os imigrantes, o bota abaixo de Pereira Passos), por outro ressaltou que os velhos problemas continuavam os mesmos. Ele sabia muito bem que as transformações incluíam alguns e excluíam outros.

— No seu constante trânsito entre os salões e as favelas, João do Rio unifica o olhar do observador — diz Dealtry. —Ele usa recursos de ironia, se mostra cético, faz críticas à modernização quando ela se mostra superficial. Mas também há momentos em que ele próprio se revela preconceituoso ou contraditório.