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Referência da poesia marginal, Cacaso ganha edição recheada de inéditos

'Poesia completa' traz novos desenhos, letras e poemas encontrados nos cadernos do autor mineiro
Antônio Carlos Ferreira de Brito, o Cacaso
Foto: Reprodução de Marcos Vilas Boas / Acervo dos herdeiros de Cacaso
Antônio Carlos Ferreira de Brito, o Cacaso Foto: Reprodução de Marcos Vilas Boas / Acervo dos herdeiros de Cacaso

RIO — A obra de um dos poetas mais emblemáticos das décadas de 1970 e 1980, integrante da chamada Geração Mimeógrafo, ainda guarda tantas novidades que parece um baú inesgotável. Além dos seis livros que publicou em vida, Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, deixou 23 cadernos após sua morte prematura, em 1987, aos 43 anos. Das páginas desses diários, escritos entre 1977 e 1987, já haviam saído poemas inéditos que complementaram “Lero-Lero” (Cosac Naify), publicado em 2012 como a sua mais completa antologia póstuma. Agora, os cadernos enriquecem a publicação de “Poesia completa” (Companhia das Letras), que chega hoje às livrarias.

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Organizada pela editora Heloisa Jahn e pela cantora e compositora Rosa Emília Dias, viúva do autor, a nova edição — acompanhada por textos de Roberto Schwarz, Heloisa Buarque de Hollanda, Francisco Alvim, Vilma Arêas e Mariano Marovatto — é cheia de surpresas. Traz desenhos, fotografias, letras de canções e, claro, versos inéditos do mineiro radicado no Rio. Paralelamente, a editora também lança hoje um e-book gratuito com uma faceta menos conhecida de Cacaso: a prosa. Com o título de “Doutor Caneta” e seleção de Marovatto, reúne oito contos tirados do caderno, sendo seis inéditos.

— Os poemas, canções e contos inéditos ajudam a completar o retrato de Cacaso — diz Heloisa Jahn. — Nos cadernos, há muitas anotações que acabaram virando outros poemas ou canções. É como se fosse um material maleável, uma grande arca de ideias, que vai se desdobrando.

Cacaso desenhado por Rosa Emília, sua segunda esposa Foto: Acervo dos herdeiros de Cacaso/ Reprodução de Marcos Vilas Boas / Agência O Globo
Cacaso desenhado por Rosa Emília, sua segunda esposa Foto: Acervo dos herdeiros de Cacaso/ Reprodução de Marcos Vilas Boas / Agência O Globo

As novidades encontradas por Rosa e Heloisa reforçam a ideia de uma obra em movimento. Entre os inéditos, há poemas curtos, de dois ou três versos, que capturam um instante de vida e parecem prontos para virar outra coisa, como conto ou canção.

— Acho muito bonito quando Cacaso resume suas ideias em poucas linhas — diz a editora. — O verso vem quase como um tiro, uma flechada no momento que está passando. Como “Tem tempo que é de sossego/ tem tempo que é de morcego”, que por sinal é um verso bem atual.

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Nascido em Uberaba, em 1944, Cacaso ajudou a difundir a poesia marginal nas universidades e na imprensa, levando-a além dos saraus e do mimeógrafo. Um dos mentores de Ana Cristina Cesar e admirador de Paulo Leminski, foi uma referência para poetas de sua época, como Geraldo Carneiro .

— Ele era o professor de aulas anárquicas na PUC-RJ nos anos 70. Depois disse adeus à universidade e se tornou um dos melhores letristas do Brasil. Sempre com um pé na lucidez e outro no delírio — diz o poeta, letrista e membro da Academia Brasileira de Letras.

A obra do mineiro, porém, andava um tanto esquecida. Em 2013, Heloisa estava na fila do lançamento de “Toda poesia”, de Leminski, quando ouviu alguém dizer: “Melhor ainda é o Cacaso.” E Heloisa se deu conta de que, assim como seu contemporâneo paranaense, Cacaso merecia uma coleção à altura de sua obra, e que contemplasse também suas canções. A escrita maliciosa e bem-humorada tinha tudo para falar com o público atual.

Desenho feitos pelo poeta Antônio Carlos Ferreira de Brito, o Cacaso Foto: Reprodução de Marcos Vilas Boas / Acervo dos herdeiros de Cacaso
Desenho feitos pelo poeta Antônio Carlos Ferreira de Brito, o Cacaso Foto: Reprodução de Marcos Vilas Boas / Acervo dos herdeiros de Cacaso

Por coincidência, Rosa Emília trabalhava num projeto de songbook de Cacaso. Ao reunir os cadernos, que estavam espalhados, conseguiu expandir o catálogo. Em três anos de pesquisa, o número de letras cresceu de 88 para 266. E foi aí que seu projeto se fundiu com o de Heloisa. Como não havia espaço para todas as letras no livro, Rosa fez uma seleção com cerca de 60 e deixou as demais para uma futura publicação da produção musical.

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Cacaso fez sua primeira incursão nas letras de música após lançar seu livro de estreia, “A palavra cerzida”, de 1967. Entre seus parceiros de composição estão nomes como Tom Jobim, Edu Lobo, Francis Himes, Sueli Costa, João Donato, Toquinho e a própria Rosa Emília.

Segundo Rosa, que recebia de Cacaso cartas recheadas de poemas, ele chegou a pensar em viver só de composição. Ela acredita, porém, que o letrista era muito diferente do poeta.

— O Cacaso-poeta se alimentava da obra dos grandes líricos —diz ela. —Ele desejava alcançar os seus ídolos Drummond e Manuel Bandeira. Já o letrista tinha uma métrica própria na cabeça. Estruturava a letra já pensando em uma melodia. Quando entregava aos compositores, era sempre fácil de musicar.

'Cacausos' de mineiro

Na última fase de sua vida, já consagrado como poeta e letrista, Cacaso passou a explorar novas formas de expressão. O autor mineiro encontrou na prosa um formato possível para suas observações do cotidiano. A incursão foi breve, mas intensa, rendendo uma série de pequenos contos que se assemelham a causos — ou, seria melhor dizer: “cacausos”?

O fato é que estes textos ainda são pouco conhecidos. Escritos nos anos 1980, eles foram encontrados nos 23 cadernos deixados pelo autor ao morrer. Todos são inéditos em livro — e apenas dois já haviam aparecido em revistas, em 1986 e 1987 (ano da morte do autor). O poeta e pesquisador Mariano Marovatto selecionou oito deles para o e-book “Doutor Caneta”, disponibilizado gratuitamente pela Companhia das Letras a partir de hoje.

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Inicialmente, o plano da editora era publicá-los em um livrinho de 20 páginas que acompanharia a edição de “Poesia completa”. Com a pandemia, porém, veio a ideia do formato eletrônico.

— No caderno há muitos esboços de prosa, mas há também essas mais consistentes, que ele transformou em contos — diz Marovatto. — São historinhas de amigos, de familiares, fofocas do interior, bem aqueles casos de mineiro mesmo. A cara do Cacaso.

Os textos são cheio de personagens curiosos. Em “Meu tio”, há o parente meio trambiqueiro do interior que vai passar um tempo indeterminado na casa do narrador. Típico sujeito nascido para se envolver em confusões, gasta fortunas com criações de galos para rinhas ilegais, trafica aves raras e vive na esbórnia.

Outra figura rara é o tal Doutor Caneta, que dá título ao livro. Trata-se de um “prestador de serviços”, expressão que pode ser usada tanto no sentido prático quanto no filosófico. Querido por todos, sempre dá um jeito de resolver os problemas alheios. “Quem era o Dr. Caneta? Eu nunca consegui saber”, diz o narrador. “O que eu pressentia era que ele tinha vindo ao mundo como um órgão de expressão de tudo que era mudo; dos que não conseguiam falar de suas alegrias ou de seus sofrimentos”.

Em uma anotação de seu diário, Cacaso fala de Doutor Caneta como uma metáfora da profissão de escritor. Após explicar que “todo escritor escreve por quem não escreve”, ele aponta o poeta Francisco Alvim, seu conterrâneo e um dos grandes da sua geração, como um “tipo de Doutor Caneta”. “É o estilo de todos. A voz de todos”, completa.

Hoje com 82 anos, Alvim ainda não leu a produção em prosa do amigo, e não sabia da comparação. Ao ser informado sobre as características do personagem, logo exclamou: “Mas o Caneta é o Cacaso!”

— Ele nunca comentou comigo diretamente sobre essas histórias — diz o poeta. — O Cacaso faz parte de uma grande tradição nossa da poesia sensorial. Ele fez essa ponte entre a poesia e a música. Não conheço seus contos, mas tudo o que ele escreve tem essa força popular tremenda. Uma certa mineirice.

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Segundo Rosa Emília Dias, mãe de Paula, segunda filha de Cacaso — do primeiro casamento dele, com a antropóloga e pesquisadora Leilah Landim Assumpção de Brito, nasceu Pedro — , o poeta estava em plena evolução para a prosa quando morreu, vítima de um infarto fulminante em 27 de dezembro de 1987.

— Com a prosa, ele estava descobrindo uma nova estética, e se divertia com isso — diz Rosa. — Não sabemos o que teria sido o Cacaso prosador se ele tivesse seguido adiante. Mas esses textos que deixou mostram o que foi a “pessoa Cacaso”, uma pessoa divertida, culta, alegre.

Dois poemas inéditos de Cacaso

"aquarela"

Nos seus olhos vejo medo

vejo um caso singular

o avesso do segredo

a distância do lugar

vejo água de moinho

vejo luz e anoitecer

o silêncio do carinho

o sinal de bem-querer

"litoral"

pituba é cutuba

arembepe é estrepe

paciência é paciência

ondina e sina

barra e farra

itapoã é vã