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Renato Janine Ribeiro: 'Instituições brasileiras são incapazes de controlar a irracionalidade de seus protagonistas'

Em novo livro, filósofo e ex-ministro da Educação recorre a conceitos de Rousseau e Marx para explicar o enfrentamento da pandemia: 'autores antagônicos cujas ideias são complementares'
O ex-ministro da Educação e filósofo Renato Janine Ribeiro, autor de "Duas ideias filosóficas e a pandemia" Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo
O ex-ministro da Educação e filósofo Renato Janine Ribeiro, autor de "Duas ideias filosóficas e a pandemia" Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

Duas ideias filosóficas martelaram na cabeça do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da USP, durante a pandemia. A primeira é de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que afirmou que a principal característica do homem no Estado de Natureza é a piedade ou compaixão, ou seja, a capacidade de compartilhar o sofrimento de qualquer outro ser vivo. A outra ideia vem de Karl Marx , que, em 1857, escreveu: “A Humanidade só se propõe tarefas que pode resolver.”

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No recém-lançado “Duas ideias filosóficas e a pandemia” (Estação Liberdade), Janine Ribeiro resgata os conceitos de Rousseau e Marx para pensar o presente. Segundo ele, a compaixão norteou o combate à Covid-19. E mais: o que em outros tempos era um problema irremediável — uma pandemia — tornou-se uma tarefa que podemos resolver graças à ciência. A vitória sobre o vírus, portanto, depende da aliança entre a compaixão identificada por Rousseau e o progresso técnico elogiado por Marx.

Ministro da Educação de Dilma Rousseff, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e fã da série “Merlí” (protagonizada por um professor que se esforça para aproximar a filosofia do cotidiano de seus alunos), Janine participa, nesta quarta-feira (16), do debate "Compaixão e ética em tempos de democracia vacilante" no Teatro Aliança Francesa, em São Paulo. Em entrevista ao GLOBO, ele lamenta que as instituições brasileiras pareçam “incapazes de eliminar ou controlar a irracionalidade de seus protagonistas”.

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A compaixão de que fala Rousseau é o que as redes sociais chamam de empatia?

Sim. Compaixão e empatia vêm de páthos , que é sofrimento. Para Rousseau, o ser humano tem a capacidade de sofrer com o que sofre, colocar-se na pele do outro. Ele captou uma mudança significativa em seu tempo: o prazer público que sentíamos com as execuções públicas estava sendo substituído por ideais de humanidade e pela procura por reduzir o sofrimento alheio. Até a guilhotina foi uma tentativa de diminuir o sofrimento do condenado, matando-o de forma instantânea e científica.

Rousseau opõe compaixão e razão. No entanto, razão e compaixão avançaram juntas nos últimos séculos.

No “Discurso sobre a ciência e as artes”, Rousseau afirma que o progresso é nocivo e desvinculou o homem de sua natureza compassiva. Ele é o único pensador do Século das Luzes a ser contra a razão e o progresso. A ideia filosófica de Rousseau que apresento no livro está associada à disposições afetivas. A de Marx, ao avanço da ciência e da tecnologia. Rousseau jamais diria que as tarefas da Humanidade seriam resolvidas pelo avanço da ciência. Ele não acreditava no progresso. Marx, sim. No entanto, a ciência construiu os meios para atingir os fins designados por Rousseau, para que a compaixão fosse possível. São autores antagônicos cujas ideias são complementares.

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Por que no Brasil o combate à pandemia não foi guiado pela compaixão?

A falta de compaixão é um traço comum da extrema direita. Após a queda das ditaduras latino-americanas, seus simpatizantes se refugiaram na exaltação da violência. Por algum tempo, esse discurso permaneceu abafado e não se traduziu em representação política. Depois, líderes tornaram lícito o discurso de ódio. Em momentos de carência social e falta de perspectivas econômicas, culpa-se o outro pela crise. Em vez de entender que a crise é resultado do aumento do preço do petróleo, por exemplo, identificam-se bodes expiatórios: negros, indígenas, nordestinos, pobres. Ou até as feministas e os homossexuais, acusados de destruir as famílias. O ódio é causado pela sensação de empobrecimento e perda de poder.

Você afirma que a insegurança sentida por quem perdeu privilégios com a ascensão de grupos vulneráveis deve ser “compreendida, tratada e acolhida”. Como fazer isso sem legitimar preconceitos e reacionarismo?

Não tenho receita. O discurso da direita é paradoxal: financiado pelos ricos, mas se diz antissistema. Não dá para provar para essas pessoas que elas estão erradas com base no discurso iluminista. É preciso mexer no afeto delas, entender por que se encaminharam para o ódio e não para a compaixão. É um trabalho difícil. Talvez os psicólogos e os antropólogos possam nos ajudar.

Você escreve que o triunfo da compaixão é um indício de que a cultura se “feminizou”. Como entender essa afirmação em tempos de problematização do masculino e do feminino?

Carol Gilligan (filósofa americana) defende a existência de uma ética feminina do cuidado e uma ética masculina baseada em justiça e punição. Ela dá o exemplo do menino que rouba o remédio de que precisa, enquanto a menina tenta negociar com o farmacêutico. O feminino não precisa estar associado exclusivamente à mulher e pode ser pensado não como passividade, mas como receptividade e acolhimento. A sociedade tem caminhado em direção a valores ditos femininos, como o senso de responsabilidade coletiva que nos garantiu o sistema de seguridade social.

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Você afirma que a autoajuda “pegou muita coisa de Rousseau, mas geralmente sem o confessar”. Pode citar um exemplo?

Rousseau diz que o homem enxerga não a si mesmo, mas a imagem que o outro faz dele. O homem é lapidado em função do olhar do outro, a quem ele quer agradar. O resultado é insegurança e arrogância. A autoajuda diz algo parecido: seja quem você é. No entanto, a filosofia não deve confortar o leitor, mas desafiá-lo. Se você ler Rousseau e entender que pode ser egoísta porque ele autoriza a ser autêntico, sua leitura foi muito ruim! Deixou toda a compaixão de fora. Um dia desses vi um livro chamado “Filosofia em 60 segundos” (risos) ! É muito pouco! Também tem um chamado “60 minutos para entender Friedrich Nietzsche”. Aí já dá para ter uma visão genérica de Nietzsche. Mas será o suficiente para te desafiar?

O que pode a filosofia em tempos de crise? Quais os riscos de pensar no calor do momento?

O risco é errar. A filosofia pode incentivar a colaboração e a redução da violência e do ódio. Rousseau pode nos ajudar nisso, embora não fosse fã do laço social.

Que outros filósofos podem vir ao nosso auxílio hoje?

Os existencialistas. Em suas memórias, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir colocaram a própria vida sob enfoque ético. Tanto que até hoje tem gente dando pitaco na vida deles! Mas eles próprios abriram espaço para isso ao refletir sobre o que é uma vida autêntica.

Como avalia a luta pelo progresso da ciência no Brasil atual?

Nossos cientistas dão o melhor de si, mas há enorme carência de recursos e total ignorância por parte do governo, que não se interessa por ciência, tecnologia, educação e cultura. As instituições brasileiras parecem incapazes de eliminar ou controlar a irracionalidade de seus protagonistas. É um problema grave, que afeta o progresso social. O Brasil vai crescer se melhorarmos o PIB, por meio das ciências exatas e biológicas, e o nosso convívio, o que depende das ciências.

Capa de "Duas ideias filosóficas e a pandemia", de Renato Janine Ribeiro (Estação Liberdade) Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Duas ideias filosóficas e a pandemia", de Renato Janine Ribeiro (Estação Liberdade) Foto: Reprodução / Divulgação

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"Duas ideias filosóficas e a pandemia"

Autor: Renato Janine Ribeiro. Editora: Estação Liberdade. Páginas: 96. Preço: R$ 38.