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Resenha: novo livro de Ieda Magri mostra as emoções de uma mulher de 40 anos de volta à casa dos pais

'Uma exposição', de Ieda Magri, transporta os leitores a uma esfera nassariana, sobretudo a de 'Lavoura arcaica'
Da terra. Cena de “Lavoura arcaica”: elo com a “esfera nassariana” Foto: Divulgação
Da terra. Cena de “Lavoura arcaica”: elo com a “esfera nassariana” Foto: Divulgação

Depois de três décadas, uma mulher de 40 anos volta à casa da infância, no Sul do Brasil, para participar de uma grande celebração familiar que acontecerá em torno da morte de um boi escolhido cuidadosamente. O boi 45. Relacionamentos desfeitos e uma vida longe dali são as circunstâncias atuais. Ela escreve e busca no relato dar sentido às emoções que a assaltam nesse movimento em direção ao tempo pretérito.

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Nascida em Águas Frias (SC), Ieda Magri já publicou no campo da prosa “Tinha uma coisa aqui” (2007), “Olhos de bicho” (2013) e “Ninguém” (2016). Em “Uma exposição”, pela evocação da matriz familiar, a ligação com a terra e com os ciclos da vida camponesa, somos transportados a uma esfera nassariana, sobretudo a de “Lavoura arcaica” (1975). Afetos ferozes marcam ambas as narrativas, mas se em Nassar surge um narrador masculino em embate com a lei paterna, a evocar a figura da matriarca como pura dedicação, aqui nos deparamos com o ponto de vista de uma narradora que a tudo estranha, sobretudo em relação à mãe. E como dói. “Todas essas ainda crianças sou eu”, afirma.

A própria linguagem assinala esse deslizamento: ao designar o patriarca, a personagem se vale de diferentes tratamentos. “Meu pai”, por vezes é “nosso pai”, mas sobretudo “o pai” (modo bastante comum no Sul do país para referir à figura paterna). Um homem que sente compaixão pelo boi, mas é quem o mata com facadas certeiras, trazendo a morte nas mãos. Um mundo rude é narrado, de veias, tripas e vísceras. Como se o romance exalasse esse cheiro de sangue vivo, tanto dos inúmeros animais abatidos, quanto do líquido espesso que corre nas artérias familiares, a um só tempo irmanando e envenenando o grupo. Porque há um senso de coletividade sempre presente: “nosso pai”.

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Em “Uma exposição”, simbolicamente assassina-se a casa da infância, lugar de intensidades e espaço de contradições. Mas não se limita ao pai o gesto bárbaro — vide o episódio em que a protagonista rememora o dia em que a família reunida mata gatos com espingarda e não sofre por isso, por considerar uma atitude natural. Trata-se de uma violência que atinge a todos, em diferentes graus, mas o narrar coloca a devida lente de aumento em tudo isso: “E era eu com a faca na mão, não meu pai, meu tio ou Caio”.

Amor e dor

É belo o modo de Magri articular tudo isso, oferecendo o próprio coração em uma bandeja, revirando sentimentos que deveriam permanecer trancados a sete chaves. Mas decide-se pela exposição, já que eles continuam latejando, a exemplo do coração que palpita fora do corpo de um animal depois de morto. Ou como os dentes da família, descritos como “imperfeitos, falhados, irregulares”. Por entre frestas e falhas a narradora olha os afetos tortos e as raízes entranhadas no terreno instável da memória.

No contato com a figura materna, amor e dor convivem em uma esgrima infinita — na paradigmática cena do ataque de asma, a mãe é quem cuida, ajudando a respirar, mas não oferece colo. “A asma a obrigava a me amar, a asma a punia por não me amar sempre assim!” Mãe que é raiva e cansaço, a temperar o coração do boi com o alho que provoca alergia, mãe que alivia o peito asfixiado, mas dispõe de garras dadas ao sufocamento. Mãe que machuca, mas “não foi por mal”. Magri brilha certeira nessas passagens, em que a temperatura do texto sobe e nos leva a respirar fundo, junto a essa menina que, agora adulta, sente na pele e nos ossos o peso de uma relação tão delicada.

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E o corpo está em cena o tempo todo. São os animais mortos em rituais familiares (coelhos, porcos, bois, galinhas, rãs, tatus) que se expõem com suas entranhas preenchidas e reviradas. Do outro lado, corpos humanos, aqueles do teatro familiar. Mas apenas um deles escreve, e isso muda tudo. Na capa do livro, vê-se uma foto de família apresentando fatias de rostos, uma parte do corpo do pai, outra nesga da mãe, um pedaço da face da filha. Ao final, essa mesma fotografia ressurge inteira, mas sabemos que não há inteireza possível, apenas a tentativa de compor esse retrato quebrado, porque insuficiente. No grafar do tempo reside o máximo desnudamento, salto mortal sem rede de proteção. E o relato ganha espessura ao indagar muitas vezes como narrar, na constante mediação pela literatura: Sebald, Coetzee, Szymborska, Bataille surgem como alguns dos interlocutores.

A narrativa se fecha com a imagem de duas árvores abraçadas, fortes e frondosas, se adaptando às intempéries. Também uma possível cena de amor entre mãe e filha a manejar mudas, dando vida aos pés de alface. Entre o mundo de relações predatórias com os animais e um universo de atenção ao que podem nos ensinar outros seres, entre eles as plantas, não parece haver resposta certa ou consolo. Resta o exercício da escrita para indagar sobre possíveis formas de voltar para casa, aquela da origem, nunca evidente, mas que pulsa como nervo exposto indefinidamente.

Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e coorganizou, entre outros, o volume “Falando com estranhos — O estrangeiro e a literatura brasileira” (7letras, 2016)

4cbb7308-8c81-4254-a8b0-7dae59c97367.jpg “Uma exposição”
Autora:
Ieda Magri. Editora: Relicário. Páginas: 132. Preço: R$ 45,90. Cotação: ótimo.