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Romance argentino traduz a voz eloquente de um indígena missionário

Estilo e edição primorosos marcam romance da argentina Sara Gallardo, originado de uma reportagem de 1968 sobre seu encontro com Eisejuaz, um homem dividido entre a conversão ao cristianismo e o xamanismo
A argentina Sara Gallardo: crítica compara 'Eisejuaz' a livros como 'Macunaíma', de Mário de Andrade Foto: Divulgação
A argentina Sara Gallardo: crítica compara 'Eisejuaz' a livros como 'Macunaíma', de Mário de Andrade Foto: Divulgação

Um dos segredos mais bem guardados da ficção argentina, já que os próprios leitores portenhos descobriram o livro tardiamente, “Eisejuaz” chega ao Brasil em edição que lhe faz justiça, com textos de apoio e tradução primorosa de Mariana Sanchez. Resultado do encontro da autora Sara Gallardo (1931-1988) com o indígena Eisejuaz por ocasião de uma reportagem que a escritora redigiu em 1968 sobre a sua trajetória, o romance é a reescrita — ou a “tradução” — dessa história como ficção. Figura complexa, que vive entre dois mundos, Eisejuaz foi convertido ao cristianismo pela Assembleia de Deus em missão norueguesa e rebatizado como Lisandro Veiga, mas não deixa de ser filho de xamã, sendo que no livro ele se torna, além de protagonista, também narrador de sua própria história.

Daí o romance consistir na tentativa corajosa, por parte de Gallardo, de captar a “voz” de Eisejuaz assim como as vozes que ele ouve enigmaticamente, resultando em uma torção única do castelhano que exigiu empenho semelhante da tradutora brasileira na conversão ao português.

Ao ouvir a voz do próprio Senhor, “aquele que ninguém conhece”, com quem no entanto conversa, Eisejuaz assim a descreve: “Vi a voz do senhor pintada e pulando em todos os cantos, brilhante e sempre velada, cantando a sempre calada, em todos os cantos aquela mesma voz daquele que é só, que não nasceu nunca nem nunca morrerá”. Como filho de xamã, o personagem ouve ao mesmo tempo as vozes da mata, dos bichos e de outros seres.

O roteiro de sua história é relativamente simples: convencido de que possui uma missão divina e solitária a cumprir, Eisejuaz abandona o acampamento evangélico onde é uma espécie de líder e se torna, para todos os efeitos, um traidor da causa. Assim o personagem se apresenta, logo nas primeiras páginas: “Sou Eisejuaz, Este Também, o comprado pelo Senhor, o do longo caminho.” Conforme se pode notar, são vários os seus mundos como também seus nomes. Em outra ocasião, se apresenta como Água que Corre.

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Após perder a sua mulher e resgatar um homem doente, o Paqui, Eisejuaz abandona a sua vida e se dirige à mata — onde se confina, cuida do homem e ouve vozes. Mas ninguém acredita em sua missão particular: “Acha que foi escolhido mas está pior do que a iguana, pior do que o tatu: nem toca onde dormir você tem, nem força pra cavar uma”, diz a ele uma velha do acampamento, a quem responde quase sempre de modo lacônico: “Nada não falei.” Em outros momentos, Eisejuaz também escuta de seus antigos companheiros: “Filho, um animal demasiado solitário se devora a si mesmo.” Para eles, Lisandro Veiga perdeu o juízo.

A beleza do livro se define, no entanto, não tanto pela história de peregrinação missionária do indígena, mas sobretudo pela própria enunciação — a forma como as coisas são ditas. Nesse sentido, Eisejuaz está tão perto da poesia, pela singularidade de sua elocução, quanto do próprio romance.

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Parte da crítica costuma compará-lo a livros como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, ou à literatura de autores como Guimarães Rosa e do mexicano Juan Rulfo. Talvez por raciocínios como este, feito pelo protagonista: “Vi que mentia, porque tem duas caras e vejo as duas juntas.” Ou este, que poderia ser dito por Riobaldo: “Gostaria e não gostaria. Pra mim tanto faz.”

Não pude ler a versão em espanhol de Sara Gallardo, que é também uma espécie de “tradutora” do castelhano pobre de Eisejuaz, mas o resultado em português é esplêndido — ao mesmo tempo bárbaro e gracioso, fluido e desafiador, límpido e enigmático.

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Em nota sobre a tradução, Mariana Sanchez diz que o espanhol de Gallardo é calcado numa oralidade com notável efeito coloquial, em que ressoa a fala do homem do Noroeste argentino sem deixar de soar contemporânea. Daí que Sanchez tenha buscado, segundo explica, manter no português o registro de uma voz provinciana mas não circunscrita a uma região específica do país. Expressões como “guspir”, “rancar” e “alevantar” são frequentes ao longo do livro, assim como negações duplas (“nada não havia”) e acumulo de advérbios (“tão grandemente muito”), que conferem uma dicção particular à narrativa.

Este talvez seja o grande assunto de Eisejuaz: a voz. Não só a voz do protagonista, mas também “a voz do Senhor” que é citada por meio de uma série de referências aos testamentos, assim como a voz de todos os outros seres que se mesclam, finalmente, à voz da própria autora.

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Se na reportagem de 1968 a própria Gallardo chega a concluir que a vida de Eisejuaz “não cabe inteira nesta página”, em posfácio da presente edição o professor Alexandre Nodari vai mais longe ao argumentar que é a própria “voz dos antigos profetas” que a reportagem — esta “etnografia amadora” — não é capaz de captar. A ficção, nessa perspectiva, diferentemente da reportagem, seria uma “antropologia especulativa”.

Haveria aí, naturalmente, um impasse ético na situação de uma escritora branca reproduzir a voz de um excluído — e em seu próprio idioma branco. Mas é de tal impasse que vem a solução. É também nessa “metafísica da mistura” que reside a grandeza do romance, nessa invenção múltipla de mundos e de línguas que se misturam.

Capa do livro 'Eisejuaz', de Sara Gallardo Foto: Reprodução
Capa do livro 'Eisejuaz', de Sara Gallardo Foto: Reprodução

“Eisejuaz”
Autor
: Sara Gallardo . Editora : Relicário. Tradução : Mariana Sanchez. Páginas : 240. Preço : R$ 55,90. Cotação : Ótimo.

* Victor da Rosa é crítico literário e doutor em Literatura pela UFSC