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Romance de 1895 que retrata relação gay e inter-racial, 'Bom crioulo' ganha nova edição

Ainda polêmica depois de enfrentar preconceito em seu tempo, obra agora é acusada de racismo e homofobia
Acusada de racismo e homofobia, 'Bom crioulo' ganha nova edição Foto: André Mello
Acusada de racismo e homofobia, 'Bom crioulo' ganha nova edição Foto: André Mello

RIO — Pornográfico, complexo, asqueroso, fascinante, racista, pioneiro — as reações dos críticos e estudiosos ao romance “Bom crioulo” costumam ser contundentes. Mais de cem anos depois de seu escandaloso lançamento, poucos saem indiferentes de sua leitura. Mas, se uma nova edição do clássico de Adolfo Caminha chega agora às livrarias num Brasil muito diferente daquele de sua primeira publicação, permanece a polêmica em torno de sua premissa.

Considerada uma das primeiras representações de uma relação gay e inter-racial da literatura brasileira, a história de amor entre o marujo negro Amaro e o grumete branco Aleixo é tida tanto como uma referência positiva quanto negativa nos movimentos LGBT e negro. Se na época foi vítima do preconceito de seu tempo, agora a situação se inverteu: é acusado de racismo e homofobia.

Embora elevado à condição de clássico e anualmente incluído na lista de vários vestibulares, o romance do autor cearense, morto aos 29 anos em 1897, ainda exige edições e contextualizações cuidadosas. O volume da Todavia, que acaba de sair, vem acompanhado de introdução do historiador americano James N. Green e posfácio da pesquisadora catarinense Regina Dalcastagnè, que iluminam os problemas e virtudes do livro.

— Não tem sentido trazer um livro desses, com a eletricidade dele, sem estar bem preparado para o debate — defende o editor Leandro Sarmatz, da Todavia.

A “eletricidade” de “Bom crioulo” o acompanha desde 1895, ano de seu lançamento, quando foi chamado de “grosseiramente imundo” em uma crítica do escritor Valentim Magalhães. Embora tenha vendido relativamente bem (5 mil cópias), só ganhou nova edição nos anos 1930. Dessa vez, foi a Marinha que se revoltou ao ver a homossexualidade associada à instituição. Banido no Estado Novo, voltou às livrarias em 1950. Nos anos 1980, virou objeto de estudos de literatura gay. Mas a representação problemática dos personagens também começou a incomodar os críticos, e o livro ganhou pecha de racista. O que era pioneiro virou, para muitos, arcaico.

O escritor Adolfo Caminha (1867-1897) Foto: Reprodução / Internet
O escritor Adolfo Caminha (1867-1897) Foto: Reprodução / Internet

Caminha era influenciado pelo naturalismo, movimento que buscava demonstrar, na literatura, as teorias científicas sobre o comportamento humano. Sob a perspectiva do que era considerado ciência na época, o livro trata de questões como as condições dos marinheiros, os problemas raciais e a vida insalubre nos bairros pobres da cidade. Amaro é um escravo foragido que encontra refúgio na Marinha, onde é constantemente maltratado. Lá, apaixona-se por um jovem grumete branco e loiro, Aleixo, que o autor descreve como “efebo”. Os dois vão viver juntos numa pensão em uma área miserável do Rio, mas a dona da pensão seduz Aleixo.

Dotado de uma força muscular incomum, Amaro é quase sempre retratado de forma animalesca e sub-humana, com comportamento errático e violento. O homoerotismo também aparece como um desvio. Alguns trechos causam muito incômodo, como quando Amaro se desespera diante da “brancura láctea e maciça da carne tenra” de Aleixo e “dentro do negro” rugem “desejos de touro pressentindo a fêmea”.

Mas, assim como o livro pode espelhar o racismo e a homofobia do seu tempo, consegue ser “mais complexo do que isso”, escreve Green em seu prefácio . Ele lembra que o retrato de Amaro é ambíguo, e o autor também lhe dá qualidades, como a gentileza e a disposição para o trabalho.

Autor de “Violência nas letras”, livro que analisa as polêmicas na literatura brasileira (incluindo as provocadas pelo livro de Caminha), o pesquisador César Braga-Pinto traça paralelos entre os problemas de o “Bom crioulo” e de “Os sertões”, de Euclides da Cunha:

— Ambos revelam uma relação semelhante de fascinação e ao mesmo tempo pânico face ao outro étnico. No caso do romance, o negro, que antes era praticamente excluído do discurso nacional, agora surge como problema a ser resolvido. Assim como o sertanejo de Euclides, ele é desconhecido e perigoso, e por isso deve ser objeto de estudo.

O youtuber e escritor Samuel Gomes, Foto: Grabriela Muller / Divulgação
O youtuber e escritor Samuel Gomes, Foto: Grabriela Muller / Divulgação

VISÕES SOBRE UM LIVRO QUE — AINDA — DIVIDE:

Vagner Amaro (autor e editor da Malê, que publica apenas autores negros): “Mais eu lia o livro, mais a voz do narrador me parecia determinada a associar o Bom Crioulo a a um ser dominado pelos instintos, o que é típico do naturalismo.. “Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo”, escreve o autor. Caminha também faz comparações dos outros personagens com os instintos animais, mas em Bom-Crioulo, por todo o contexto histórico, isso tem outras repercussões. “Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo”, escreve o autor.  Em 2018, lancei “Eles”, livro de contos com personagens negros. Acredito que os impactos negativos da leitura de “Bom Crioulo” na minha trajetória me deu uma medida de como construir personagens de forma que a literatura não sirva como um elemento de reafirmação do racismo, ao estereotipar e negar as subjetividades dos personagens".

César Braga-Pinto (professor de Literatura da Northwestern University, EUA): “A partir da publicação em inglês pela Gay Sunshine Press, em 1982, o livro começou a ser objeto de estudos de literatura gay, tendo sido considerado um dos primeiros romances de temática explicitamente homossexual da literatura mundial. Por vezes, argumentou-se: apesar de racista, o livro é transgressor pela representação da sexualidade. Acontece que os dois aspectos não podem ser separados.  Reivindicar Amaro como um sujeito subalterno é extremamente problemático. Aliás, é curioso que o livro tenha sido lido sobretudo pela perspectiva gay, frequentemente por críticos gays, mas raramente por críticos afro-descendentes. Na verdade, seria inimaginável um negro americano reivindicar o romance como a comunidade gay parece ter reivindicado. Apenas recentemente, que eu saiba pela primeira vez, um crítico afro-descendente, Aimonte Aidoo, professor de uma universidade norte-americana, estudou o romance, enfatizando como a homossexualidade ali é de fato uma corporificação de duas instituições históricas: o colonialismo e a escravidão.  Sem querer dar exclusividade a um único e autêntico “lugar de fala”, acho essa perspectiva muito bem-vinda..”

Samuel Gomes (escritor e youtuber do canal “Guardei no armário”, com relatos de homens e mulheres gays): “A representação racista e homofóbica incomoda, mas é preciso ver o recorte da época em que foi escrito. Foi uma leitura muito forte, porque me identifiquei com algumas situações que o personagem passa. O cara é um fodido, nunca tinha sido amado. Como escravo e marujo, só era usado. Depois de morar com Aleixo, conseguiu ter uma referência de família. Pela primeira vez tem um devaneio de fazer uma vida. Só que Aleixo não estava ainda entendendo a sua própria sexualidade, e tudo acaba. Ele termina sozinho... É estranho que o livro tenha sido escrito há tanto tempo, e fale de uma realidade que muitos homens negros LGBT ainda vivem. É como se eles não tivessem direito ao amor. Também é incrível que a primeira história gay do Brasil envolva um negro: leva a gente a pensar em interseccionalidade.”