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Romance de Gary Shteyngart faz jornada agridoce pela América de Trump

Para compor sua história, autor viajou quatro meses de ônibus pelos EUA
O escritor russo-americano Gary Shteyngart, que lança o romance "Lake success" Foto: Divulgação/Todavia
O escritor russo-americano Gary Shteyngart, que lança o romance "Lake success" Foto: Divulgação/Todavia

RIO — O americano Gary Shteyngart fez seu nome com livros que possuíam pontos em comum: apostavam na sátira, entraram nas listas de melhores do ano e traziam como protagonistas imigrantes russos, como ele, apegados ao país de origem. Agora, em seu quarto romance, o autor sai da forma de “Absurdistão” (2006) e “Uma história de amor real e supertriste” (2010). Em “Lake Success” (2018), lançado no Brasil pela Todavia, Shteyngart, 47 anos, mergulha nos EUA de Trump.

A trama gira em torno do milionário nova-iorquino Barry Cohen, gestor de fundos que se vê em crise existencial após o diagnóstico de autismo de seu filho único e uma briga com a mulher. Desesperado, ele se livra do celular e do cartão de crédito sem limite e parte para uma viagem de ônibus pelos rincões do país em busca de uma ex dos tempos de faculdade.

O tema surgiu após uma pesquisa de campo (“faço minha escrita da maneira mais jornalística possível”, diz Shteyngart por e-mail). Após o crash de 2008, ele conta que fez amizades com administradores de fundos:

— Eu ia a seus clubes, bebia com eles até as quatro da manhã. O que emergiu foi uma turma que, apesar da riqueza, não era feliz, tinha relações familiares ruins e perdia muito dinheiro dos clientes. Um até me disse que eu nunca deveria investir com ele.

Capa do romance "Lake success", de Gary Shteyngart Foto: Reprodução
Capa do romance "Lake success", de Gary Shteyngart Foto: Reprodução

A jornada que leva Barry a lugares como Baltimore, Richmond e El Paso saiu de uma viagem de quatro meses que o autor fez antes de iniciar as 448 páginas de “Lake Success”.

— Peguei um ônibus no verão de 2016 e, como o Barry, viajei de costa a costa, com muitas paradas em diferentes cidades— recorda o autor.— Tive a chance de encontrar pessoas que eram os americanos esquecidos. Alguns haviam acabado de sair de prisões ou de hospitais psiquiátricos. Muitos deles previram que Trump seria eleito, numa época em que a maioria dos meus amigos nas duas costas pensavam que isso era impossível.

Obra mais madura

Claro que, assim como seus romances anteriores, “Lake Success” é recheado de sarcasmo, humor negro e frases politicamente incorretas. O resultado, no entanto, é um livro mais maduro, retrato de um país “cujos cidadãos, em sua maioria, vão morrer mais pobre que seus pais.”

— Depois de 1991, pensei que os países da antiga União Soviética e do Leste Europeu se tornariam mais democráticos, mas ocorreu o oposto. Os EUA se tornaram mais parecidos com a Rússia — analisa Shteyngart. — Sob o disfarce do atual presidente, há uma oligarquia corrupta que declara jornalistas como “inimigos do povo”. Aqueles que não são brancos, homens, heterossexuais e cristãos veem seus direitos atacados todos os dias. O sonho americano basicamente está acabado, exceto para os vigaristas e os lavadores de dinheiro.

No decorrer do romance, Shteyngart faz diversas referências a “O grande Gatsby” (1925) , obra-prima do americano F. Scott Fitzgerald (1896-1940) que mostrava os excessos da burguesia americana antes da Grande Depressão. Não passam despercebidos a obsessão de Barry por relógios de luxo — únicos itens que ele leva para a viagem — e sua vaidade pelos US$ 2,4 bilhões que administra.

— “Gatsby” não envelheceu nada mal, eu acho. A infinita luta americana por dinheiro, o exibicionismo... Lembra do armário cheio de camisas do Gatsby? Até alguns dos rompantes racistas e eugenistas poderiam se passar em 2019.

Gary Shteyngart na Flip 2012 Foto: Felipe Hanower / Agência O Globo
Gary Shteyngart na Flip 2012 Foto: Felipe Hanower / Agência O Globo

Contra a crise, leitura

O autor não esconde o desânimo com as consequências do governo Trump:

—Nem posso mais pensar sobre isso, drena todo o meu tempo. Vou bastante ao Canadá, e sempre me pergunto se não devo ficar por lá. Ainda não achei moqueca e vatapá, mas a comida é muito boa na cidade — diz o escritor, que conheceu o Brasil durante a Flip de 2012 e lamenta “o mini-Trump de vocês, que queima a Amazônia”. — Tenho um filho pequeno e, tendo crescido numa ditadura em colapso, não consigo imaginar que ele encare o mesmo cenário.

Enquanto trabalha na adaptação de “Lake Success” para uma série da HBO com Jake Gyllenhaal no papel principal, o autor só vê uma saída para a crise das democracias:

— Leia um romance! Toda vez que o fazemos, entramos na consciência de outro ser humano e alongamos nossos músculos de empatia. Ler um romance não parece um ato com capacidade para mudar o mundo, mas eu acredito que seja.

“Lake Success” Autor: Gary Shteyngart Editora: Todavia Tradução: André Czarnobai Páginas: 448 Preço: R$ 79,90