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Romance ‘perdido’ de Stephen Spender testemunha a liberdade de costumes da Alemanha antes do nazismo

Escrito no calor do momento, "O templo" trata da homossexualidade de modo franco e demorou quase 60 anos para ser publicado
O escritor Stephen Spender Foto: Reprodução
O escritor Stephen Spender Foto: Reprodução

Como explica o autor na introdução a seu próprio livro, se nos anos 1920 jovens americanos como Hemingway e Fitzgerald iam à França e Espanha para fugir da Lei Seca, os jovens ingleses iam à Alemanha para fugir da repressão sexual. Enquanto a Inglaterra censurava os livros de James Joyce e Radcliffe Hall por “obscenidade”, na República de Weimar, ainda que assolada pela crise econômica e política, vivia-se uma inédita liberdade de costumes que era, para o jovem inglês, um paraíso.

Antes de se tornar um reputado poeta de sua geração, Stephen Spender (1909-1995) compôs, em “O Templo”, um misto de ficção e memória, narrando os melhores anos de juventude do estudante de Oxford Paul Schoner (seu alter-ego) ao lado dos amigos Simon Wilmot e William Bradshaw (pseudônimos do poeta W. H. Auden e do escritor Christopher Isherwood, todos íntimos do autor) em duas viagens pela Alemanha durante a República de Weimar — o regime estabelecido no país do fim da Primeira Guerra Mundial ao início do regime nazista, em 1933.

Na primeira viagem, em 1929, Paul/Spender se divide entre noitadas nos bares gays de Hamburgo e banhos de sol nu ao lado de belos rapazes à beira dos rios. Acompanham-no o maçante intelectual Ernst e do enérgico fotógrafo Joachim (alter-ego do alemão Herbert List, cujas fotografias ilustram a bela edição da 34), com quem discute arte, beleza e sexo.

Algumas das melhores passagens surgem do otimismo com o futuro que só parece possível quando se é jovem, conforme Paul e seus amigos se põem a refletir sobre a verdade da poesia ou a beleza artística da fotografia.

Alerta constante

A segunda viagem, em 1932, se dá às vésperas de uma eleição cujo radicalismo contaminou a sociedade alemã. Durante um passeio, escutam tiros na floresta — são jovens de direita organizando clubes de tiros, que logo evoluem para milícias planejando ataques contra artistas e alvos políticos. Na rua, Paul vê um homem de vermelho ser espancado por nazistas. O namorado de Joachim — um jovem camponês revoltado com a própria pobreza — é seduzido pelas promessas messiânicas do nazismo. A radicalização, como o leitor sabe, já se tornara irreversível.

O livro foi escrito no calor do momento, no início da década de 1930. O editor de Spender o considerou impublicável: uma obra que tratava de modo franco sobre homossexualidade, no ambiente conservador da época, seria considerada pornográfica.

Sir Stephen Spender (ao centro) Foto: Reprodução
Sir Stephen Spender (ao centro) Foto: Reprodução

O manuscrito terminou vendido para a Universidade do Texas e esquecido. Nos anos 1980, um pesquisador o reencontrou e alertou o autor. Spender o revisou e o publicou pela primeira vez em 1988. Feita para a primeira edição do romance no Brasil, em 1993, a tradução é de Raul de Sá Miranda — diplomata de longa carreira no Itamaraty, de onde foi demitido em 1968 pela ditadura militar por ser homossexual.

A obra, que nunca havia sido reeditada por aqui desde então, chega em um momento propício. É impossível ler sobre a Alemanha da República de Weimar e não perceber os paralelos assustadores com o Brasil após a última eleição. O engano de parte da elite alemã se mantém um alerta constante.

Alertado por Paul da violência crescente da direita, o aristocrático Ernst o tranquiliza: “É concebível que os conservadores, os empresários, e também os aristocratas levem Hitler ao poder no futuro. Mas eles saberão o que estão fazendo. São pessoas de grandes responsabilidades, e Hitler só alcançaria o poder no quadro de condições por eles estabelecidas. Eles o fariam livrar-se dos fanáticos e dos radicais”.

O engano de Ernst custará vidas e a própria destruição do país. E a obra de Spender é um alerta constante a identifica sinais óbvios, na esperança de que não se repitam.

* Samir Machado de Machado é autor de “Homens Elegantes” (Rocco, 2016) e “Tupinilândia” (Todavia, 2019)

“O templo”. Autor: Stephen Spender. Editora: 34. Tradução: Raul de Sá. Páginas: 240. Preço: R$ 56. Cotação: ótimo.