Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Sabedoria da floresta: novas edições da Flip e da Flup destacam pensamento indígena

Com debates e competições de poesia, eventos literários se abrem para as lições dos povos originários
Convidado da Flip, o cineasta e líder espiritual do povo guarani Mbya, Carlos Papá, passeia por Nhe’éry Foto: Anna Dantes / Divulgação
Convidado da Flip, o cineasta e líder espiritual do povo guarani Mbya, Carlos Papá, passeia por Nhe’éry Foto: Anna Dantes / Divulgação

RIO —  Chegou a hora de ouvir os povos originários. Sofrendo, assim como todo o setor cultural, com a escassez de patrocínio e as limitações da pandemia , dois dos principais eventos do país foram em busca do conhecimento daqueles que, há séculos, sabem o que é sobreviver. Com início marcado para 27 de novembro, a Festa Literária de Paraty (Flip) de 2021 ainda não tem programação totalmente definida, mas já anunciou que a sua 19ª edição será realizada em estreita colaboração com o povo guarani. A Mata Atlântica e a sua vegetação serão o princípio norteador do evento, que terá entre seus convidados mestres e pensadores indígenas como Carlos Papá, Sueli Maxakali e Jaider Esbell.

Veja a progamação da Flup10anos

Já a Festa Literária das Periferias (Flup), que chega ao seu décimo aniversário, começa hoje com o Slam Coalkan, o primeiro a reunir povos indígenas de todo o continente americano. Nascido para empoderar territórios tradicionalmente excluídos dos programas literários, o evento revelou autores negros e periféricos desde o seu nascimento. Agora, quer chamar a atenção também para a expressão da floresta, seus autores, poetas, intelectuais e, claro, slammers.

Seu Jorge : 'Como homem negro, de 50 anos, tenho questões'

O slam é uma competição poética, em que performancers leem ou recitam trabalhos. Oito representantes da América do Sul vão dividir a cena com oito da América do Norte — uma referência à profecia que prevê uma grande mudança de consciência quando o condor, ave símbolo da parte Sul do continente, se encontrar com a águia, símbolo da parte Norte.

— Muitos ( dos participantes ) trazem idiomas indígenas e cosmologias de seus povos de origem para as narrativas — diz a co-curadora Renata Tupinambá. — Apesar de falarem de questões do cotidiano, apresentam histórias nunca antes contadas. Existe uma espiritualidade muito presente na forma com que expressam e olham sua arte. E tudo que os move é a ancestralidade.

Ed Sheeran : Cantor lança disco em que dá adeus à juventude e celebrando vida em família

A disputa acontece hoje e amanhã no Morro da Babilônia, no Rio. Ao se apresentarem juntos, diferentes povos podem mostrar sua diversidade. Cada um tem suas próprias tradições, identidades e memória ancestral. Do lado brasileiro, há nomes como a cearense Auritha Tabajara, primeira cordelista indígena do país; o rapper carioca Randu Puri, que lançou este ano um EP com músicas no idioma de seu povo; e o rapper Ian Wapichana, nascido em Roraima e radicado em Brasília.

— Com a colonização, vários povos sumiram, desapareceram. E com eles toda a biodiversidade que esse ecossistema pode nos presentear — diz Wapichana. — Quero levar a mensagem da floresta, dos encantados e dos rios a quem quiser ouvir.

A lupa nos povos originários acontece em um momento em que o mundo teme o aumento do desmatamento e das invasões a reservas indígenas no Brasil. Embora a CPI da Covid-19 tenha retirado a acusação de genocídio contra Jair Bolsonaro, advogados indígenas denunciaram o presidente no Tribunal Penal Internacional, em Haia.

Ancestralidade

Criador da Flup, Julio Ludemir lembra que, na busca por investimento estrangeiro, a pauta da floresta é a que mais seduziu patrocinadores de fora. O Slam Coalkan, por sinal, é uma parceria com o Toronto International Festival of Authors.

— A agenda brasileira que interessa o mundo neste momento é ambiental — diz Ludemir, que destaca o crescimento de uma identificação indígena no país. — As pessoas redescobriram sua ancestralidade, assim como muitos haviam se descoberto negros através de um longo processo de narrativas. Estamos incorporando a pauta indígena na Flup, mas sem abrir mão das outras pautas.

Ney Matogrosso : 'Errei de mão e pronto. Não teve vergonha nem vaidade', diz cantor sobre nude vazada

Em meio às crises social, econômica e sanitária, os eventos literários tentam imaginar novas formas de viver. A Flip elegeu como guia a figura de Nhe’éry, que é como os guaranis se referem à Mata Atlântica. Nhe’éry é “onde as almas se banham”, uma espécie de portal e santuário que guarda a diversidade da floresta. Que outro mundo teria sido construído se os colonizadores tivessem ouvido o que os povos originários tinham a dizer? E que outro mundo ainda é possível se a população compreender Nhe’éry? Estas serão algumas das questões que emergirão dos encontros.

— A Mata Atlântica para nós é um amuleto de vida, algo muito sagrado, que os europeus não entenderam — diz Carlos Papá, cineasta e líder espiritual do povo guarani Mbya, e um dos nomes confirmados da festa. — Muitos estão olhando para a Amazônia, enquanto Nhe’éry está sendo devastada. Como porta-voz de Nhe’éry, quero mostrar que não dá para ser feliz sem os rios e as plantas. A sociedade constrói santuários pequenos e quadrados, enquanto este já está pronto.