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Samanta Schweblin: ‘Se literatura feita por mulheres é apenas uma moda, fracassamos como sociedade’

Citada como integrante do novo ‘boom latino-americano’ de escritoras que flertam com insólito e fantástico, autora argentina — cujo livro ‘Kentukis’ gira em torno de boneco que mistura bicho de pelúcia com drone — rejeita o rótulo
A escritora argentina Samanta Schweblin, traduzida para 24 idiomas e autora de livros adaptados para filme e série Foto: Suhrkamp Verlag / Divulgação
A escritora argentina Samanta Schweblin, traduzida para 24 idiomas e autora de livros adaptados para filme e série Foto: Suhrkamp Verlag / Divulgação

A escritora argentina Samanta Schweblin estava a caminho de um almoço com o pai quando lhe veio à mente a imagem de um “kentuki”: um perigoso cruzamento de bicho de pelúcia com drone. Câmeras acopladas atrás dos olhos de adoráveis coelhos, dragões e toupeiras permitiriam que anônimos, munidos apenas de um tablet, assistissem às vidas dos donos dos bichinhos.

— Me pareceu tão surpreendente que algo tão perigoso e complexo como um drone possa ser vendido no supermercado e que algo tão mais simples, como um kentuki, ainda não tenha ocorrido a ninguém — diz Schweblin num e-mail ao GLOBO. — Contei a ideia a meu pai assim que me sentei à mesa. Cheio de entusiasmo, ele gritou que devia registrar a patente antes que alguém na China tivesse a mesma ideia. Quando ele percebeu que eu não falava sério, disse, desiludido: “Faça o que sabe fazer.

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Schweblin seguiu o conselho do pai e escreveu um livro: “Kentukis”, recém-lançado no Brasil pela Fósforo . O romance retrata personagens que têm ou são kentukis. Ter um kentuki é ser um “amo”, é comprar o bichinho tecnológico (por US$ 279) e concordar em ser espionado. Já ser um kentuki é possuir o cartão de conexão que permite controlá-lo à distância. As conexões são criadas por acaso. Um amo não pode escolher o operador de seu kentuki, e quem compra um cartão de conexão não sabe onde ele será ativado. Uma vez perdida, a conexão não pode ser restabelecida.

O romance de Schweblin acompanha pessoas que são ou têm kentukis em 25 cidades. Emilia, uma idosa peruana que sente saudades do filho que trabalha em Hong Kong, controla o kentuki de Eva, uma jovem alemã. Cheng Shi-Xu, de Xangai, opera o panda colorido de Cécile, na França, e se apaixona (à distância mesmo) por Taolin, chinesa que está por trás do bichinho do irmão de sua ama. O croata Grigor opera vários kentukis de uma vez e aproveita a desregulamentação do mercado para vender suas conexões para quem prefere amos de determinados países: “existia gente disposta a dar uma fortuna para viver na pobreza por poucas horas por dia, e havia os que pagavam para fazer turismo sem sair de casa, passear pela Índia sem nunca ter diarreia ou conhecer o inverno polar descalço e de pijama”. Para dar verossimilhança a realidades tão diversas, Schweblin recorreu à ajuda de amigos espalhados pelo mundo: uma editora norueguesa, o diretor de um festival literário croata, um escritor peruano.

Empurrão dos avós

Quando começou a escrever, ela estava convicta de preferiria ser kentuki a ter um, mas mudou de ideia ao se dar conta “do poder e da responsabilidade que implica ter um dispositivo desses”.

— Se eu tivesse um kentuki, a pessoa do outro lado talvez descobrisse que não tenho rotina — conta. — Que passo muito tempo sentada na minha poltrona ou no meu colchão de ioga sem fazer absolutamente nada, sem me mexer, mas com os olhos fixos num ponto imaginário. Que canto músicas de péssima qualidade enquanto cozinho. Que falo constantemente comigo mesma. E outras coisas que não vou contar, mas que estão todas no livro.

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Desde 2012, Schweblin vive em Berlim, onde seu companheiro, Maximiliano Pallocchini, é dono de um restaurante de empanadas argentinas chamado Gloria. Ela começou a escrever ainda criança. Aos fins de semana, passeava com o avô por museus, cinemas e teatros e, terminado o dia, ele a incentivava a anotar tudo o que haviam feito num diário. Havia regras: ela não podia, por exemplo, descrever um quadro com adjetivos banais, como “bonito”. Se lhe faltassem palavras, o avô a encorajava a procurá-las em poemas de Alfonsina Storni e Cesar Vallejo. Aos 12 anos, já escrevia contos e poemas. Quando a avó a inscreveu no concurso literário do bairro, ela ganhou o primeiro, o segundo e o terceiro lugares nas categorias de prosa e poesia.

— Foi um papelão! Minha avó e eu fomos expulsas do teatro a vaias — recorda. — Não me lembro sobre o que eram os contos e poemas. Naquela época, tudo o que escrevia era terrivelmente dramático: suicídios, fim do mundo, dor, monstruosidades por toda parte, enfim, a pré-adolescência em seu estado mais puro.

Uma das mais bem-sucedidas escritoras argentinas de sua geração, Schweblin já foi traduzida para 24 idiomas. Seu romance de estreia, “Distância de resgate” , lançado no Brasil pela Record, concorreu ao prestigioso International Booker Prize. A adaptação cinematográfica é assinada pela peruana Claudia Llosa (“A teta assustada”) e estreia em outubro. O roteiro foi escrito pela própria Schweblin, que estudou cinema na universidade. “Kentukis” será transformado numa série de TV, mas a autora preferiu não se envolver no projeto. No ano que vem, a Fósforo lança dois livros de contos da argentina: “Sete casas vazias” e “Pássaros na boca” (publicado anteriormente pela Benvirá).

Mestre do terror

Ela é frequentemente citada como integrante do novo “boom latino-americano” , do qual também participam a argentina Mariana Enríquez , a mexicana Fernanda Melchor e escritoras que flertam com o insólito e o fantástico e conquistaram a crítica estrangeira. Um jornal argentino chegou a chamá-la de “a escritora que mete medo no mundo”, por conta de suas histórias em que o terror irrompe do cotidiano. Ela, porém, rejeita a palavra “boom”.

— O boom foi um movimento comercial e, portanto, temporário. A literatura produzida por mulheres não é uma moda, mas o que é escrito por metade da humanidade. Não estamos escrevendo nem mais nem melhor. Sempre houve escritoras talentosas. A diferença é que agora temos visibilidade. Se isso é apenas um “boom”, fracassamos não como mercado editorial, mas como sociedade.