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Segredo mais bem guardado da literatura argentina, Silvina Ocampo é publicada pela primeira vez no Brasil

Autora dos contos de 'A fúria', que sai pela Companhia das Letras, teve carreira ofuscada pelo amigo Borges e pelo marido Bioy Casares
Pepe Fernandéz Foto: Divulgação
Pepe Fernandéz Foto: Divulgação

Como se vê na imagem acima, Silvina Ocampo não gostava muito de aparecer. A autora nasceu e morreu em Buenos Aires (1903-1993), passando a maior parte de seus 90 anos à sombra de intelectuais mais célebres e muito próximos: Victoria Ocampo, sua irmã mais velha, poderosa editora da lendária revista “Sur”; Adolfo Bioy Casares , mestre da literatura fantástica e seu marido; Jorge Luis Borges, que além de ser Borges era o melhor amigo do casal.

Quem estuda e conheceu Silvina diz que ficar em segundo plano era confortável para ela, caçula de seis irmãos que se dizia “a etcétera da família”. Era também estratégia: enquanto sua turma dividia holofotes, ela podia se dedicar a escrever sem pressão e sem pressa. Redescoberta após a morte, Silvina hoje é considerada por muitos a maior contista argentina — e agora é publicada pela primeira vez no Brasil, pela Companhia das Letras, com “A fúria”(1959), coleção de textos surreais e perturbadores que viram o cotidiano do avesso.

Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares em uma praça de Paris em outubro de 1973 Foto: PEPE FERNANDEZ / Agência O Globo
Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares em uma praça de Paris em outubro de 1973 Foto: PEPE FERNANDEZ / Agência O Globo

Apartamento lendário

O escritor e cineasta Edgardo Cozarinsky, 80 anos, amigo de vida inteira de Silvina, conta que observou o “renascimento” da autora:

— Durante décadas, Silvina Ocampo foi o segredo mais bem guardado das letras argentinas. Admirada pelos melhores escritores, recebia menções breves em manuais de literatura, associações óbvias com Borges e Bioy. De uns anos para cá, ela tem encontrado novos leitores, cada vez mais numerosos e apaixonados.

Em 1940, Silvina causou certa espécie na sociedade argentina ao casar-se com Bioy, 11 anos mais jovem - Borges foi uma das testemunhas. Quem llhes apresentou, em 1934, foi a mãe de Bioy, Martha Casares, dizendo ao filho que Silvina era "a mais inteligente das Ocampo". Martha, contudo, se opôs à relação quando ambos começaram a namorar. O pai dele também se opôs, e que não impediu Silvina e Adolfo de, em 1935, irem viver juntos. Após o casamento, instalaram-se em um apartamento de 900 metros quadrados e 22 peças no elegante bairro da Recoleta , na rua Posadas, número 1650.

O endereço que se tornou lendário por ser um ponto de encontro de várias gerações de intelectuais do Cone Sul, mas também pelas ameaçadoras pilhas de livros, bagunça generalizada e falta de manutenção crônica. Danubio Torres Fierro, escritor e diplomata uruguaio que conviveu com o casal nos anos 1970, descreveu assim o local: "O apartamento, de amplos corredores com piso de mármore branco, tinha espaços generosos e pé-direito alto. Sua solidez, marca de uma época de opulência portenha, contrastava com a negligência natural de dois idosos e atarefados com questões incessantes. (...) Em todo caso, quando a Argentina se tornou repressora, ali se podia respirar e se espraiar em um refúgio".

Entre essas paredes Silvina guardou sua intimidade. O amigo Marcelo Puchon-Rivière a chamava de "um enigma que não cessa". A autora descreveu a ele como lidava com visitar: "Quando recebia gente, nunca falava durante um silêncio. Esperava que alguém dissesse algo e que outro respondesse. Só então eu falava".

Relacionamento aberto

Silvina e Adolfo não tinham um casamento tradicional. Mantendo uma lealdade mútua, ambos tiveram vários relacionamentos com outras pessoas. Aos poucos vai se conhecendo essa vida secreta com a publicação de diários e correspondências - como as de Elena Gastro, a escritora mexicana que teve casos com Bioy Casares e com a poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972) - que por sua vez teve uma relação amorosa com a própria Silvina.

Torres Fierro recorda que Silvina, ao lhe falar de escritoras com que "Adolfito" tinha casos, não o fazia "nem com ressentimento nem reprovação (...) havia, talvez, um desejo de escárnio. Quarenta anos de matrimônio implicavam uma vitória sobre adversidades e adversárias. Existia uma cumplicidade imune a qualquer revés".

Bioy Casares ao lado da filha Marta; a mulher de chapéu é Silvina Ocampo Foto: Agência O Globo
Bioy Casares ao lado da filha Marta; a mulher de chapéu é Silvina Ocampo Foto: Agência O Globo

A autora, que estudou pintura em Paris com Fernand Lèger e Giorgio de Chirico , mantinha um ateliê em casa e nunca deixou de desenhar e retratar amigos. Já ela não era muito fã de posar, normalmente cobrindo o rosto com chapéis, óculos escuros de gatinha e até as próprias mãos.

Para Cozarinsky, está presente na obra da amiga o “humor ingênuo e pérfido” que ela usava para desconcertar os amigos. E lembra de uma tarde no apartamento da Recoleta:

— Levado por um excesso de veemência juvenil, disse, já não sei sobre quem: “essa pessoa me dá nojo”. Silvina me encarou fixamente durante um instante e logo murmurou: “E você não ama esse nojo?”

Um desajuste a cada frase

Os 34 contos de “A fúria” são marcados pela tensão: “um desajuste paira em cada frase, como um prenúncio de catástrofe”, escreve no posfácio da edição brasileira a Laura Janina Hosiasson, professora de literatura hispano-americana da USP. A pesquisadora chilena também nota a influência dos versos de Silvina em sua prosa (antes de “A fúria”, ela tinha publicado dois livros de poemas) e ressalta o “confronto entre o ambiente rotineiro e a extravagância imaginativa”.

Em “A casa de açúcar” (conto que Julio Cortázar dizia ser seu favorito), a antiga dona de um imóvel exerce uma influência sinistra sobre a nova inquilina. No conto “As fografias”, há uma cruel sessão de fotos no aniversária de uma jovem paralítica. Já a visita de duas amigas a uma costureira toma rumos inesperados em “O vestido de veludo”.

Algumas histórias, com destaque para “O casamento” e “Voz ao telefone”, tem a ação dominada por crianças nada infantis, capazes das maiores maldades. Em outras, como “O mal” e Os sonhos de Leopoldina”, o foco é em velhos que se defrontam com a passagem do tempo e a decrepitude.

Autora dos autores

Não é exatamente o tipo de livro que chega ao topo dos “mais vendidos”, analisa a pesquisadora argentina Adriana Kanzepolsky:

— Penso que, pelo tipo de literatura que fez, ela nunca vai ser um best seller. Na Argentina, já faz um tempo que Silvina é muito valorizada na academia.

Além de Cortázar, Silvina se tornou favorita de autores como:

  • O italiano Italo Calvino (1923-1985): “Eu não conheço outro escritor que capture melhor a magia dos rituais cotidianos, o rosto proibido ou oculto que nossos espelhos não nos mostram"
  • O argentino Tomás Eloy Martinez (1934-2010): "‘A fúria’ é uma das reuniões de contos mais intensas da literatura argentina. A primeira leitura deste livro pode suscitar mal-estares, mudanças de ânimo, deslumbramentos. Certas frases e uma ou outra palavra violenta desencadeiam a perplexidade e a inquietude física"
  • A poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972): "Nos relatos de Silvina o mundo trivial permanece reconhecível, ainda que estranho e transfigurado: de repente, ele se abre e é outro, mas  passagem da fronteira é completamente imperceptível"
  • O chileno Roberto Bolaño (1953-2003): “Seus livros parecem vir de uma limpa cozinha literária”
  • Não poderia faltar o marido, Adolfo Bioy Casares (1914-1999): "A literatura de Silvina é singular, não se parece com nada, como se tivesse sofrido influências apenas de si mesma"

Borges dedicou a ela o primeiro conto que publicou, “Pierre Menard, autor do ‘Quixote’” — foi em 1939, justamente na revista literária “Sur”, da irmã Victoria Ocampo .

Escritora Clarice Lispector Foto: Divulgação
Escritora Clarice Lispector Foto: Divulgação

Desecontro com Clarice

Uma célebre leitora brasileira foi Clarice Lispector (1920-1977). Com várias afinidades de forma e conteúdo, as duas leram uma à outra e iam se encontrar na viagem de Clarice a Buenos Aires para a feira do livro de 1976, um ano antes da morte da autora de "A paixão segundo G.H.". “Ela quis me conhecer, eu não pude ir naquele dia e realmente lamento”, disse a argentina a Noemí Ulla no livro “Encuentros con Silvina Ocampo” (1982).

A jornalista e escritora argentina Mariana Enríquez , que esteve na Flip deste ano, escreveu o ensaio biográfico “La hermana menor: un retrato de Silvina Ocampo” (2014), ainda sem edição brasileira. Para ela, a autora foi a frente de seu tempo:

— São contos atemporais, de sensibilidade muito particular, com manejo de linguagem surpreendente. Invejo os brasileiros que terão o prazer de lê-los pela primeira vez.

Capa do livro "A fúria" (Companhia das Letras), de Silvina Ocampo Foto: Divulgação
Capa do livro "A fúria" (Companhia das Letras), de Silvina Ocampo Foto: Divulgação

“A fúria”

Autora: Silvina Ocampo Editora: Companhia das Letras Tradução: Livia Deorsola Páginas: 224 Preço: R$ 69,90